Ética dos afetos: a linguagem do corpo negro
- Monique Prado

- 9 de nov.
- 5 min de leitura
Atualizado: 11 de nov.
Esse ensaio está em diálogo com um primeiro respiro produzido sobre o tema no texto "A pedagogia dos afetos: corpo, linguagem e performance", ocasião em que elaborei a presença de múltiplas vibrações das quais o corpo está exposto quando em processo pedagógico.

O comportamento humano produzido dentro de acordos principiológico socialmente estabelecidos, é resumidamente aquele que nos ajuda a organizar uma moralidade para que enquanto socidade, possamos viver em harmonia. Acionar o caminho da ética para pensar os afetos é então refletir quais são valores filosóficos que nos direciona ao estágio de comprensão qqueo que acontece fora (sociedade) tem efeito dentro (subjetividade).
A extensa carga valorativa trasmitida geração por geração no contexto da diáspora está umbilicalmente vinculada as africanidades. Esses valores nos ensinam sobre um modo de criar a partir do corpo, seja nas soluções cotidianas de vida ou na intelectualidade. Portanto, para nos implicarmos em uma ética dos afetos enquanto sujeito, é indispensável a tríade corpo, território e afetações, já que o nosso corpo preto-diaspórico guarda memórias que antecedem o banzo da destorritorialização. Esse corpo-histórico é enraizado em saberes que vão além da ordem do consciente.
Isto é, o corpo, a linguagem e as afetações compõem elementos substanciais dos quais, postos em movimento, criam uma antítese a codificação normativa ocidental. Como Leda Martins nos ensinou, se mudamos o olhar para a chave das africanidades, percebemos outras grafias e oralidades, permeando o corpo e criando um toque mácio ao jeito de existir negro. Lélia Gonzalez quando fala de uma cisão com o imperialismo americano e organiza o conceito de América Ladina, reivindicando a nossa amefricanidade enquanto povo afro-índigena do sul global e Beatriz Nascimento quando organiza o quilombo como matriz ideológico e política, comprovam o poder dos elementos fundamentais território e linguagem como parte da experiência insurgente e (re)inventiva do corpo negro.
Importante dizer que a insistência do uso da palavra "negro" se filia a uma corrente de pensamento de muitas pensadoras que me antecederam e deixaram cravadas em mim a responsabilidade de reafirmar o nosso campo das ontologias, isto é, da existência física, ética e moral, como algo que não foi criado anteontem, já que desde o primeiro africano que pisou nesse continente criou formas de não se submeter as atrocidades coloniais e não sucumbir em sua essência, mantendo um lastro histórico-político em seu corpo.
Há uma urgência do corpo negro em se dizer. Recriar a trama, Insurgir às coloniais que se reinventam na nossa sociedade contemporânea como enredos de verdadeiro ódio e desgraça que nos leva ao adoecimento instantaneo, magnetizado pela imagem de corpos negros de jovens estirados no chão do bairro da Penha no Rio de Janeiro, em Paraisópolis ou em Santos, como se o pacto da branquitude fosse na verdade um acordo colonial irrevogável e essa gramática dos afetos ocidentais alimenta o nosso imaginário do impossível.
A linguagem do medo, do terror, da ignorância e da raiva, permea cada corpo negro atravessado por cenas cotidianas de desgraça. Pense em uma mãe preta que carrega o filho ainda ensanguentado nos braços? Isso não te arrepia? Não te revolta ver o corpo negro se esvaziando de vida de forma prematura?
Permanecemos em constante estado de alerta. Como se não houvesse saída para esse corpo se escoaar da tragédia que só é autoriza um viver zumbizante como diria Krenak. O pessimismo é a ferramente de poder instaurada pelo Estado sob corpos negros, já que em última instância, o inimigo acionado por essa máquina de moer gente tem fome dos nosos jovens.
Quando retomo um pensamento encontrado em bell hooks ao falar de uma ética amorosa, tento compreender não só as respostas que o corpo negro tem produzido em resposta a a bala do Estado , mas também observar como essas pessoas têm processado no corpo outras atmosferas para recriar a cena.
Alocar os afetos no campo da ética, é pensá-lo como princípio de ordem fundante, catalizador e catapultante. Fundante para que não esqueçamos que, o escravismo contra o nosso povo africano ainda que produza efeitos de ordem prática na nossa psique, não interrompeu processos criativos. Catalisador porque as nossas ações dentro do continente diaspórico movimentou a economia, a organização política e religiosa desse país, seja pelas técnicas de agricultura, arquitetura, musicalidade e gastronomia, para exemplificar alguns setores; recriando formas de existências e encontros com a linguagem e o movimento engendrados na nossa força motriz e pulsão de vida. E, por fim, catapultante, porque apesar de toda a revolta legítima, o desejo de nos reposicionar em outros campos, não nos descolou da genuina perspectiva de um saber artítico e articulação corporal.
Tanto assim que podemos pensar como as filosofias traduzidas no saberes do corpo que forçosamente atravessam o atlantico conservaram as suas matrizes africanas como nos ensinou beatriz Nascimento quando narra no filme "Ori" ser "um corpo atlântico. O custo da travessia ainda respinga na nossa corporeidade e na forma de elaboração das nossas inteligências matizadas na performance, no canto e na poesia. Por isso, a raiva de um senhor de engenho como mostrado no filme "Malês" de Antonio Pitanga e grande elenco e na delicada obra de Ana Maria Gonçalvez em "Um defeito de Cor", recriam o corpo diaspórico com camadas e na chave de uma outra cosmopercepção de mundo.
Nego Bispo nos ensina sobre o poder de ser um corpo orgânico, confluente e contracolonial. Para ele, foi assim que o corpo negro, aquilombado, se manteve (e se mantém) de pé por séculos, pois soube organizar a partir do corpo outras linguagens, além da escrita. É assim no candomblé, foi assim no jongo, com o tambor de mina e recentemente podemos pensar as batalhas de poesia dos Slams, como uma forma insurgência de cantar a palavra e performar o corpo de forma visceral, deixando com que o corpo se manifeste solto e perambulante pelas emoções.
Tenho tomado cuidado para não reiterar uma ótica hegêmonica sobre os afetos, acionando somente Spinoza para pensar os afetos como sinônimo de "afetações". Gosto de costurar com pensadores como Mogobe Ramose e Cunha Junior os afetos a partir da filosofia bantu que nos direciona a alimentar o corpo com tudo aquilo que impulsiona a nossa força vital. Esse esforço nos leva a pensar que a cisão ocidental entre natureza e razão atrasa a nossa forma de enxergar o mundo de forma integrada, intersubjetiva e coletiva.
Nesse sentido, uma ética dos afetos compreende todas as mazelas do racismo sim, mas reorganiza-se em comunidade para confluir como a água de um rio, não para se adequar a princípios civilizatórios compulsórios de consumo, desperdício e descarte, pelo contrário, de afetos que se espraiam para o exercício do compartilhamento, da ausência de acúmulo e da escuta do corpo.
Ora, se o Slam na sua poesia falada e contada, assim como o Camdomblé com a sua circularidade e sensibilidade corporal; se alimentam das palavras e da performatividade do corpo, não podemos admitir que a desgraça coletiva esteja posta sem escape, já que não fomos nós quem criamos a imagem distorcida do corpo negro, dilacerada e a fragilizada pelo colonialismo e transmitida em grande escala para perpetuar o racismo.
Essas imagens perturbam o nosso inconsciente.
É preciso lembrar: aceitar linguagens fartas de desgraça e miséria, não foi o caminho tomado pela nossa ancestralidade.
Pelo lastro hisórico, o corpo negro tem memória e precisa lembrar que tem para onde olhar quando se pensa como refletor de potencialidades, pois assim o fez pela fuga, pela resistência e tão logo pela estruturação da outras linguagens, a negritude tem criado a sua existência pelas palavrase pela recriação da cena.






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