Experimentações sonoras como forma de produção de imaginários
- Monique Prado

- 26 de out.
- 3 min de leitura
Nessa corrente marítima sobre afetos e imaginários tenho refletido processos criativos e interpelações sensoriais que nos ajude a reorganizar o plano emocional, psicológico, ontológico e epistêmico da nossa existência negra.

Ao captar a sonoridade como forma de experimentação que proporciona acessos a intuição, sensibilidade e afetos, o corpo preto aparece não como unicidade difusa, mas como episteme em que a corporeidade opera como disparadora de múltiplas sentidos e, portanto, produção de pensamento em desacorde com a colonização, por excelência epistemicida.
Apresentar a sonoridade como um dos caminhos que honram os nossos saberes, é interromper a imagem que o nosso corpo só produz sons em respostas as aflições do banzo: choro de terror e grito de desespero - apesar da legitimidade da voz denunciante em atentado. Aqui buscamos compreender os sons capazes de produzir arranjos emocionais que rompam com a textura exclusivamente visual e magnetizam poesia.
Tomo como exemplo as inúmeras experiências sonoras e rítmicas desencadeadas como uma conversa instrumental entre e emocionalidades como maracatu, jongo, coco, ijexá, carimbó, lambada e maxixe, samba e funk, muitos dos quais caíram no gosto popular brasileiro, mesmo que passaram por momentos de perseguição, apagamento e criminalização a sua época.

A música causa um estado emocional de presença que se costura com a memória e com a intensidade do futuro. Ela mostra como um corpo vivo desestabiliza a colonialidade e desobedece eixos brancocêntrico que impõe a linearidade. Dessa forma, o corpo negro ontológico e epistêmico encontrou códigos de sonoridade comprometidos em buscar saídas para as próprias angústias.
A instrumentalidade dos povos africanos e indígenas que mobiliza um aparato complexo de sons em consonância com as sonoridades da natureza, tais como, os berimbaus, atabaques, chocalhos, tambores, cabaças e instrumentos de cordas produzem um diálogo entre partes do corpo que encontram em contato com tais instrumentos. O dedilhar, a batida, o sopro, a manipulação, o toque menos ou mais frequente, a fricção, são como esses sons ganham forma e tornam o corpo e o instrumento uma coisa só.
A confluência dos sons produzido pelo corpo e pela instrumentalidade mostra como a força vital é acendida por rituais sonoros, visto que a imagem está sempre em movimento como uma produção cinematográfica. Isso mostra como o nosso corpo se alimenta de múltiplas linguagens: oral, instrumental, experimental, melódica e sonora.
Esse conjunto forma o som da negrura. Quando o corpo, a voz e a performance se encontram, infância e velhice se misturam como se o trampo não tivesse idade para se presentear. A fala sonora é um dos elementos de preservação de nossa ancestralidade africana e indígena. Foi ela que confundiu a brancaiada desde o primeiro africano que forçosamente veio parar em terras Panorâmicas. Sempre tivemos um talento de confundir para construir outras estéticas.
Nosso povo sempre confundiu, desvirtuou e desobedeceu pela sonoridade, não se curvando a (des)ordem colonial. O som que embalou, ninou, acudiu e fez requebrar muita gente, inclusive aqueles que demonizavam (e ainda demonizam) a essência da corporalidade negra.
Para a inquietude negra, arder em banzo, produziu uma sonoridade que estimula a vida. A magia dos ruídos, melodias, timbres e ritmos são muito mais do que fantasia, imagem, cenário. A sonoridade é parte do corpo.
A combinação harmônica de sons foi nosso pacto de bem viver. Nosso corpo preto nunca aceitou o não como possibilidade. Desorganizar a plano maldito das entranhas coloniais e ventilar com música a vida em território diásporico, despoluiu as nossas vísceras. Nos deu fôlego para a criação.
Compreender a natureza instrumental, funda o extraordinário em cada pessoa que rompe com desejos repulsivos de encerrar o amanhã em morte. Por isso que imaginário tem uma força pulsante, do nosso ori aos mergulhos eróticos, já que os sons relevam a sensibilidade desse corpo.
Minha proposta com essa série de textos sobre imaginários é que a gente se desobrigue a futuros distópicos, claro, sem ignorar as desgraças produzidas pelo brancocentrismo ocidental. É preciso reconhecer que o nosso povo nunca represou as suas especulações assentadas em futuralidades que olhem para a vasta caminhada ancestral. Por isso que o semba deu origem ao samba que deu espaço para o maxixe, a batucada, o jongo e tantas outras sonoridades sensoriais, pois o imaginário nunca se bastou em imagens de sofrimento, dor e desamor, pelo contrário.

O nosso imaginário é do fazer-ser e criar-experimentar, fundando ferramentas e representações simbólicas assentadas na memória, que acessa um portal interno infinito de cores, cheiros, tons, texturas, temperaturas, sensualidades, ritmos, gingas, líquidos e sons, capazes de sarar camadas de nossa subjetividade coletiva.






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