A mulher preta como dona de si: a psicanálise como ferramenta emancipatória:
- Monique Prado

- 26 de out.
- 5 min de leitura
A minha produção textual tem me levado a pensar o quão dinâmica a vida é. Os temas que me chamam atenção se enraízam na perspectiva do ser no mundo e isso tem me feito reorganizar as áreas de saber que me fazem pertencer. Consequentemente, a profissão passa a ser um tecido pronto para ser rasgado a qualquer momento, uma vez que a minha experiência enquanto produtora de saber não comporta mais o véu procedimental, fixo e fechado. Tenho pensado cada vez mais como ser hoje se confunde com a forma que sou posicionada no mundo. Dessa forma, a análise ancestral presentificada aponta para um futuro circular em que ontem, amanhã e hoje confluem.

Lembro quando ainda me saltava os olhos me reconhecer como "operadora de direito". Hoje essas dinâmicas já não fazem qualquer sentido, de modo que o aprofundamento psicanalítico na minha psique me ajuda a compreender caminhos marcantes da minha personalidade, mergulhado no interesse de me reconhecer como uma subjetividade autônoma e da mesma forma em conversa com a ambientação, penso que o campo teórico não pode estar desassociado da experiência.
Lembro bem disso quando essa transição começou a acontecer em mim no sentindo de que era preciso alguns rompimentos para dar espaço para uma subjetivação conversasse como uma identidade social ainda desconhecida para mim. Era antes da pandemia - talvez 2018 - quando partilhava com a minha psicanalista a minha arara novinha de roupas. A reação dela foi desconfortante ao mesmo tempo que surpreendente. Ela me confrontou na terapia perguntando o porquê o meu guarda-roupa era tão neutro? Porquê eu vestia cores cinza, branco, preto e só? O que aquilo dizia de mim?
E aquele momento de excitação, se tornou algo inquietante nas sessões seguintes, pois percebemos que havia ali uma fusão da minha figura materna com a minha própria. Eu que já era uma jovem adulta, ainda estava completamente misturada com a figura de minha mãe. O meu processo de cognição era o espelho de minha mãe na época com quase 80 anos.
Foi preciso esse choque para que algumas rupturas começassem acontecer na minha subjetividade, pois se até ali eu não me permitia sair fora da linha cartesiana, daquela sessão em diante coisas começaram a se desmontar. O plano estético de uma advogada envaidecida a partir de matrizes ortodoxas e valores cristalizados dentro de uma moral Cristã tinham me feito a cópia mais nova de minha mãe, de forma que a forma que eu me relacionava comigo e com quem me cercava tinha que ser moralmente aceito. As roupas neutras eram a tradução de uma moralidade que visavam atender as expectativas sociais daquele ambiente que me constituía. Afinal como uma criança pobre, preta, adotada e mais velha de 3 irmãos, agora adulta eu precisava vingar.
Apesar disso, me lembro de algumas vezes entrar em conflitos muito específicos com a minha mãe: a cortina da sala, a vidraça da cozinha suja, e o tapete do banheiro viraram motivos de um confronto direto em que eu questionava a forma como ela organizava a casa. Esses três elementos eram rapidamente refutados por ela que me respondia "Se você não gosta de cortinas e tapetes, a casa da rua é serventia da casa". Ao mesmo tempo em que me envia fundida com ela sabia que minha mãe era a figura imperial. Isso começou a causar em mim certo desconforto. Certamente isso não era sobre o tapete a cortina muito menos sobre o vidro sujo que eu mesma poderia ter limpado, mas sobre um desejo de vestir-se a outra maneira e ser outra pessoa.
Um outro episódio que aconteceu enquanto ainda estava no processo de subjetivação emancipado com àquela psicanalista, foi quando dividi com ela a experiência de um orgasmo. Naquela ocasião, um gozo consciente, já que explorando o meu corpo tinha sentido uma abertura de um portal sagrado interno muito profundo. Esse episódio narra um segundo conflito interno determinante para quem eu era/ quem eu queria ser. A figura de um homem branco aparece para revelar quem era o objeto do meu desejo. A psicanalista observou a forma reiterada e procedimental como eu colocava todo o meu afeto na masculinidade branca europeia. Uma desejo de apagar os vestígios da minha negrura.
Eu preciso dizer que nesse momento não havia qualquer tipo de conflito interracial que me assombrava, muito pelo contrário. Enquanto ela dizia sobre o "ideal de ego branco" na ótica de Neusa Santos, o que eu sentia era raiva por não poder sentir o que estava sentindo, ou melhor, poder sentir, mas reconhecer que ser interpelada nesse desejo dizia muito sobre a minha subjetividade, sobretudo a minha relação distorcida com o homem negro, ou a ausência dela, visto que a minha carência paterna fazia eu fugir dele que nem diabo foge da cruz,
Ela me provocou a pensar como a mesma mulher que iniciava sua vida adulta de maneira castrada e meticulosa, vestindo roupas sóbrias, também direcionava o seu desejo para aquilo que era oposto a sua própria ontologia. A época não tinha noção do efeito magnético que eurocentrismo produz na nossa organização subjetiva, ao passo que hoje compreendo tamanho abismo, já que a nossa casa era composta não por uma lar imperial, mas matrigestado e majoritariamente feminino e preto.
Como fez Grada Kilomba, tentei observar como havia uma dissonância entre o externo identificado como às regras civilizatórias que permeavam a minha residência: mãe, idosa, católica e correta e interna na minha figura: mulher, jovem, negra e obediente. Essas simbologias organizavam modos de existir e sinto que eles não foram insuportáveis, porém era preciso interromper para encontrar o próprio desejo e se reconhecer nele.
Quando essa ruptura começou a acontecer a filha retroagiu a processos de infantilização e adolescência. Por isso que o gozo era tão explícito: era de dentro que saía aquele grito molhado e sem vergonha. E que bom que aconteceu porque o grito não dizia só sobre a experimentação da própria sexualidade. Aos poucos, as roupas foram colorindo e apesar do tapete e da cortina permanecerem ainda hoje no mesmo lugar, foi eu quem tomei coragem de ventar. Me vi saindo dessa ambientação primária, descobrindo novas camadas e me abrindo para um outro eixo civilizatório, até porque para minha mãe, enquanto mulher negra, conseguir dar conta da sua maternidade solo só haveria a misericórdia e a devoção Cristã.
Quanto a mim, os anos seguintes foram de bastante conflito. E que bom!!! apesar da feição por ser lida como "operadora do Direito do outro" compreendi que a leitura pura e seca das coisas como me obrigava o direito com o seu aparato patriarcal e branco, não me cabia mais, sobretudo porque a ordem legal não tem, na prática jurídica a premissa dos direitos fundamentais, mas interesses privados como os de grandes corporações, como bancos, seguradoras e incorporadoras. Reconhecer que a ali se instaura uma matriz civilizatória eurocristã me fez interromper algo em mim que me afligia muito que era "operar a letra morta da lei" em tribunais movidos pela moralidade. Profissionalmente é impossível a fusão entre ser advogada e ser uma mulher preta, se a crítica não for ferramenta de uso cotidiana.
A ruptura com alguém neutra e cartesiana tornou-me logo em seguida alguém comprometida com o pensar-ser






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