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Resquícios coloniais: o corpo da travessia ainda arde entre os nossos

  • Foto do escritor: Monique Prado
    Monique Prado
  • 3 de nov
  • 6 min de leitura

Atualizado: 5 de nov

Algumas relações sociais são doutrinada desde muito cedo: a relação com a mãe, com o pai (quando existe) e com os nossos dengos que virão nas fases da adolescência e adulta. Mas e a relação entre irmãos?


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Nas nossas famílias negras, o quilombo geralmente é grande. Um conjunto de mini-pessoas são colocadas na sala submetidas ao poder matriarcal, já que raramente há a figura do pai ou quando há ela está desfigurada por mazelas de ordens sociais.


Aquela mulher que vem de uma linhagem de muitas feridas provocadas geracionalmente pelo peso do amadurecimento prematuro, a assunção de papéis que demandam uma carga doméstica absurda e a administração do cuidado psicoemocional de boa parte desse arranjo familiar e muitas vezes, abusos de ordem emocional, moral e sexual. Agora, essa mulher, é responsável pela gestão do cuidado de uma próxima geração.


A teia complexa de criar filhos com os mesmos acessos entre si, valores e distribuição de cuidados, coloca nessa mãe uma carga ainda maior.


Para que eu não caia em erro de generalizações, vou assumir aqui a primeira pessoa para dizer que são essas algumas leituras que faço do meu primeiro contato com a noção distributiva de afetos que corre entre irmão: minha mãe solo tentando organizar as necessidades físicas e educacionais entre mim e meus irmãos.


Por ser a mais velha, apesar da pouca diferença entra a farmegerada "escadinha", logo entrei no ciclo de responsabilidades do cuidado e não me lembro inicialmente disso gerar grandes questões psicoemocionais para mim, pelo contrário, achava muito prazeiroso ser o braço esquerdo da minha mãe na sua ausência, seja porque ela estava na igreja ou trabalhando, considerando que esses eram os únicos dois espaços sociais que tenho memória de minha mãe quando ela estava fora de casa.


Caberia então a nós irmãos compreender como autogerir aquela relação que não demorou muito a ter conflitos que hoje percebo a gravidade da situação se visualizarmos o contexto do qual eramos levados a ficar responsáveis por nossa própria sorte. De imediato elenco alguns fatores: 1) minha mãe ser aquela que Lélia Gonzalez chamou de "mãe preta" que apesar da literalidade ainda guarda muito mais profundidade do que o termo apresenta e denuncia as atrocidades de um Brasil colonial: o deslocamento da mulher negra que é obrigada a administrar o lar da patroa enquanto delega à outras pessoas o cuidado de seus próprios filhos; 2) o cuidado dos filhos fica geralmente concentrado na figura das tias, vizinhas ou a irmã mais velha e nesse caso era eu; 3) o amadurecimento compulsório e a consequente introdução ao universo dos adultos ainda criança ou adolescente; 4) o aprendizado da autogestão e tomada de decisões por essa pessoa que substituirá provisoriamente o lar.


Nada disso me pareceu absurdo quando da época em que estava passando por isso, mas muito recentemente tenho pensado o quanto isso gerou efeitos na relação entre as pessoas envolvidas, já que uma triangulação é gerada na mesma figura que ora ocupa o lugar de filha, ora de irmã e ora de mãe.


Não é preciso muito esforço para compreender os resquícios coloniais dessas relações, uma vez que as posições sociais do escravismo se assentaram por gerações, normalizando os papéis de quem merece ser cuidado e quem deve cuidar. Não à toa a mãe preta de Lélia Gonzalez guarda relação com ama de leite: aquela que era violentada pelo homem-europeu-colonialista, engravidava e deveria servir o peito ao filho da mulher-europeia-colonialista; instituindo o corpo como um prenúncio objetificação, usufruto e retirada completa de agência dessa "mãe preta", muitas vezes levadas a essa condição de forma compulsória e brutalmente violenta.


No caso de minha mãe, faz pouco tempo que me dei conta da condição que fora submetida em relação ao trabalho, já que ela passava dos 50 anos quando teve que voltar para o mercado de trabalho para nos educar enquanto crianças recém chegadas. Foi quando ela passou por três famílias e em todas elas, minha mãe passou a ocupar múltiplas funções: o serviço doméstico, a administração das dispensa e produtos de limpeza, a atividade da cozinha e o cuidado das crianças que não eram delas.


Aliás, nada ali era dela.


Enquanto isso, dos 12 anos em diante tenho uma memória muito viva de minha mãe me trazendo para perto dela e mostrando um caderninho onde ela relatava todos os gastos principais da casa: gás, luz, telefone, água e alimentação.


Esse ato que sempre vi e continuo vendo como uma forma cuidadosa de educação financeira, surtil impacto real em várias decisões e momentos da minha vida, mas principalmente enquanto ainda morava com a minha mãe e irmões. Ex: decidir o que fazer com o meu 13 ou minha participação nos lucros anos mais tarde quando já estava posicionada no mercado de trabalho e balancear se era hora ou não de morar sozinha.


Quanto aos meus irmãos, rebobinando memória e admitindo os inúmeros fragmentos, uma vez que sempre assumi uma postura de lealdade e obediência pela minha mãe, com toda certeza devo ter falhado com eles em vários aspectos. Isso percebo hoje também por conta da forma como leio a nossa irmandade tal qual ela ainda se dá atravessada por marcas desse momento em que minha mãe precisou delegar algumas funções para que ela não ficasse ainda mais sobrecarregada.


É um momento em que me lembro que começamos as nossas primeiras tentativas de cozinhar e que limpávamos a casa, com ressalva do meu irmão que ancorado nos argumentos machistas, não arrumava nem a própria cama quem dirá lavar banheiro ou louças.


Esse trecho me abre um caminho ainda mais ambiguo entre os laços de irmandade, pois cresci sem qualquer respeito pela figura do meu irmão e admito que naquele primeiro momento, exercia um autoridade sobre ele que na verdade nunca surtil efeito prático e por isso brigávamos muito quando crianças.


Já com a minha irmã a ambiguidade era ainda mais complexa porque ela exigia de mim um cuidado que eu assumi para mim, mas hoje vejo de forma cristalina que era uma relação que eu não poderia ter tomado frente de forma alguma, pois eu ficava no meio das duas e depois fui responsabilizada por ela justamente pela projeção maternal que ela colocava (ainda coloca), ao ponto de dizer que com 6 anos escreveu um cartão de dia das mães e dizia que seria obediente na escola por conta de mim, desabafando em pratos que eu tinha sido muito dura com ela e que não sabia o que sentia em relação à mim.


Esse episódio me pertubou demais. Me culpei por um tempo até porque o dia que ela me contou essa história, estavamos em uma mesa de bar e ela levantou e foi embora. Mas depois deixei de remoer porque fisiológica e temporalmente se ela habitava um corpo de 6 anos, eu tinha apenas um ano a mais, ou seja 7 anos. Como responsabilizar uma criança por uma atitude moral produzida por outra criança?


Ela se referia as feridas que eu tinha sido responsável. E as minhas feridas que tinham sido abertas pelas ausências de colo?


Eu sinto que, como irmãos, fizemos o melhor que dava naquele momento. Tenho boas memórias com eles nesse mesmo momento: guerra de ovo, matança de baratas nas noites quentes, baldes de pipocas divididas, dvd's com playlist musical e em video, faxinas longas, cantoria pela casa, brincadeiras das mais diversas.


Entretanto, fomos posicionados em papéis delicados muito novos e exposto a um mundo criado por nós mesmos em que responsabilidades eram tomadas, ainda que habitrariamente por mim, quando por exemplo, meu pai ou minha mãe biológicos resolviam aparecer e o pânico se instaurava na casa, ou quando tivemos que defender a minha mãe das acusações de abandono e negligência por parte de um de nossos vizinhos que sequer prestava qualquer tipo de ajuda para minha mãe e não tinha ideia de como faziamos para gerir aquela casa.


Eu fico pensando o quanto o cuidado de nossas famílais pretas foram ameaçados por circunstâncias externas que estão enraizadas no colonialismo, em que a imegem da mãe, a ausência do pai e a desorientação dos filhos, ainda faz parte de algo muito profundo no que se refere a abstração do que é família saudável, já que os nossos modelos são muito mais africanos que ocidentais.


Por isso algumas famílias pretas em diáspora conservam fortemente a tradição dos quintais e proximidade física com outros parentes, para distribuir esses cuidados.


Ocorre que, na realidade na mãe solo, os padrões ocidentais que empurram a mulher negra para um caminho de servidão contínua faz com que ela lide com poucas ferramentas de acesso para dividir o cuidado com outras pessoas. Portanto, os filhos quando compreendem a responsabildiade que têm na posição de irmãos, nem sempre terão somente o lúdico para passar pelas primeiras fases da vida, pelo contrário, terão que duelar internamente para preservar a doçura da fase infantil com o meio social que estão inseridos.


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©2025 por Monique Rodrigues do Prado

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