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Pactuações com imaginários: bússolas imagéticas e campos sensoriais:

  • Foto do escritor: Monique Prado
    Monique Prado
  • 23 de out.
  • 15 min de leitura

Ao assistir a palestra de Leda Maria Martins, em 21 de outubro de 2025, no Instituto Brasileiro de Teatro (IBT) me ficou a sensação de continuar pensando sobre criar políticas radicais e pactuações com imaginários, temas que venho falando desde 2020 quando capturada pela potência inventiva do afrofuturismo.


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Falar de políticas radicais e pactuações com imaginários, exige de nós um exercício pluriversal de recomposição de caminhos de bem viver. É necessário que saibamos romper com a desvantagem de viver sob a égide de um sistema colonial que ainda deixa as suas marcas na nossa vivência cotidiana, seja no modo de produção econômico-social, assim como nos arranjos dos nossos afetos. Dito de outra forma, o corpo que merece viver e usufruir o bem viver ainda não é o corpo negro, seja nas escalas exaustivas de trabalho dentro das cozinhas, nos supermercados ou no atendimento básico de saúde; seja no modo de criação de nossas famílias quando pensamos quem ocupa as posições na economia do trabalho e quem as pessoas que são empurradas à precarização e a informalidade.


Você já parou para pensar quem será que está na capa da Forbes no último mês? Quem são as pessoas que deixam aqueles jardins bonitos da Casa Vogue? Quem são as pessoas que preparam a comida nos grandes restaurantes Michelin? Quem são as cuidadosas de idosos? Quem entrega o iFood? Quem mora na cobertura?


Falar de imaginário pode parecer uma grande bobagem em tempos tão graves dos quais estamos enfrentando: mudança climática com a alta temperaturas, o racismo ambiental e a invasão de terras indígenas, são alguns desses fenômenos humanamente produzidos para criar um cenário de desgraça para uns e bem estar concentrado para outros.


Será que os grandes inventores das fintechs, àqueles envolvidos em escândalos bilionários da Faria Lima estão pensando nesse conjunto de desgraças ou estão dedicando um setores exclusivamente para criação de seus futuros? Será que os inventores tem tanto medo assim de deslocar os próprios imaginários para mais e mais tecnologia?


Seja aqui ou seja em Marte, parece claro que rico, rico não, bilionário, não tem medo de pactuações com o imaginário. Dessa forma, entrar nessa arena, é mexer com campos sensoriais pouco experimentados por nós, porém exaustivamente repactuado pelos nosso ancestrais. É lidar com o desconforto de JAMAIS conseguir se ver deslocada da desgraça coletiva. Mas já que estamos aqui o individualismo capitalista patriarcal misógino não nos deixa outra saída, a não ser imaginar, que tenhamos a coragem de assim fazê-lo. Se eu tivesse que apresentar alguns princípios polinizadores para a ética do imaginário, eu diria que precisamos urgentemente:



1 - Desafiar o eixo civilizatório vigente para reposicionar a fronteira entre o real e o que foi pactuado como realidade.


O que parece ser, às vezes não é. Vamos destrinchar a noção de fronteira, nacionalidade, racialidade. Ser da América do Sul, brasileira e negra, certamente são experiência que me constituem e elas dizem de mim em muitas camadas seja na leitura que o outro faz de mim, seja internamente, uma vez que ser daqui me forja como a latina e a negrinha como zomba Lélia Gonzalez. Mas e no meu campo intimo, o que esses atravessamentos me dizem? O que sinto quando o vento transpassa os meus cabelos crespos? Eu sinto meu coro cabeludo gelar e meu corpo arrepiar. O que sinto quando sento direto na areia consciente que em segundos a bunda estará granulada? Me posiciono de frente para o mar só para me ver pequena, tamanha a imensidão do oceano. E quando arrisco, entro no mar e desafio a gravidade ao tentar fixar os meus pés no chão, na primeira correnteza as ondas me desobedecem e conversam com o meu corpo e sinto os meus pés suspenderem do chão... E quando mês a mês o meu sangue me desce quase rasgando partes que no dia a dia quase não lembro que existem?


Como diria Sueli Carneiro: continuo preta.


Essa realidade civilizatória que em África talvez não faria qualquer sentido, em diáspora, recortada pelo território, pela negrura, pela mulheridade e pela classe que me atravessam, me penetram. Dizem quem eu sou, assim como poetizou Victoria Santa Cruz: Negra, negra, negra!


Não me aborreço por ser negra. Me aborreço por pactuarmos com a realidade de algo que não é da nossa experiência civilizatória, reconhecendo que toda essa massificação negra foi um projeto colonial bem arquitetado para nos tirar o pertencimento, nossa matriz étnica e pluriversal. É cabível dizer que enquanto negra, sou civilizada dentro do mais aterrorizante sistema: não há vez para que sejamos etnicamente múltiplos: jeje, nagô, banto, ketu, fon, hauçáss, ashati, minas, etc. Ainda assim, nessa terra de reducionismo histórico da nossa gente, como se a nossa história começasse depois da travessia - aprendemos a ser bando e é daí que veio toda a nossa pulsão criativa dos reinados quilombolas, das rezas do candomblé, e das letras reveladas mais tarde no rap. Se o nosso ancestral chorou de raiva, o tambor ritmou o tom das nossas civilizações, pois nossos reinados produziram ciência: da matemática à medicina, da arquitetura aos monumentos.


Portanto, o que é dado como "realidade" é apenas um sopro do nosso lastro civilizatório que sequer se basta em um só. Falar dos povos banto de origem congo-angola da África Central, é diferente do que falar de nosso povo iorubá que tiveram o reino de Oyo na África Ocidental. A lição de permanecer nesse território diasporico foi apreendido pelo fundamento de novas molduras, mas que guardam fundamentos em um modo de ser-estar completamente diferente da realidade criada como nossa. Não somos um povo da escassez. Se pegarmos como exemplo nossas raízes nagô (concentrado hoje em Ningéria, Benin e Togo) percebemos a pluriversalidade civilizatória, seja na organização política, na produção econômica, na agroecologia, na linguagem, na vestimenta e na espiritualidade. Não por a caso, a afrobrasilidade, sobretudo, nas religiões de matrizes africanas dizem tanto sobre nós.



2 - Compreender que muito do que vivemos hoje, já foi um dia pactuado como uma estrutura ficcional


Se eu toco o chão com as minhas mãos o que sinto é a quentura do asfalto ao invés da terra viva falando comigo, porque existe é um tecido bruto e civilizatório criado para camuflar que rio respira e foi sufocado pelas mãos contaminadas e gananciosas do homem branco europeu. Que a tragédia de não ouvir pássaros pela manhã é porque a simulação foi acordada, criando cidades descarrilhadas de prédios e tubulações. Se não há tantas mais frutas no pé nos quintais produtivos como ainda resistiam as casas até os anos 90, é porque os desertos alimentares contribuem pela alta da indústria dos fármacos. Se os atacadões estão mais cheios que as feiras livres é porque o tempo ceifou a experiencia daquilo que um dia era melhor fresco do que ultra congelado.


Ao pensar a Política greco-romana nos vem três elementos centrais: povo, território e soberania. Foram esses os elementos ficcionais que organizaram a civilidade eurocêntrica e criaram o  o Estado. Ocorre que os pilares território e povo podem facilmente ser colocados de lado, em detrimento de um poder concentrado, o que além de desequilibrar a equação e criando castas territoriais, sociais e econômicas, coloca a própria "elite soberana" contra o seu povo, sendo assim desde fundamento do que conhecemos como Brasil: extermínio de povos indignas, genocídio dos povos negros e extrativismo vegetal, mineral e animal, tamanha a desimportância desses da terra e do povo para essa lógica civilizatória.


Perceba que a noção do que é moderno, é relativizado quando pensamos que há uma capacidade destrutiva imensa que passa em cima da gente como rolo compressor ao pensar a nossa organização intersubjetiva na civilização, pois o preço de se estabelecer como corpo individual-coletivo é caro, uma vez que essas fronteiras habitacionais estão cada vez mais próximas e a gramática do bem viver cada vez mais longe se você se encontra em camadas da sociedade desprivilegiadas, o que produz efeitos de classe, de território, gênero, raça, etc.


Quando Krenak nos convida a ter respeito por uma pedra, como se nossa irmã fosse, há muito mais inteligência cosmológica do que a apresentação ficcional do que é a noção de Estado e civilização, pois a conjugação dos dois produziu descarrilhamento do nosso modo de viver em harmonia com a funcionalidade de outros seres; não por desconhecimento, mas por imposição de uma monocultura incapaz de absorver valores de outras matrizes civilizatórias.


Com efeito, a ficção posicionada como verdade única gira em torno de acúmulo, violência e exploração, de modo que a contracolonialidade proposta por Nêgo Bispo, não como forma principiológica, mas como estado de ser e permanecer são os caminhos que nos cabe para viver em confluência como modos cotidianos de vida.



3 - Desmontar valores ocidentais nos faz enxergar a vida de forma multidimensional


Se o banzo um dia foi saudade, recusa e adoecimento, hoje a corrente que marca o nosso corpo ainda nos posiciona no terror da universalidade onde tudo é único. Na tela, os espelhos digitais nos causa pavor de nos olhar sem filtro e/ou escrever sem supervisão de inteligência artificial. Assim, nos castigamos com o distanciamento até porque senão temos dinheiro, pelo menos temos iphone e isso já nos ajuda bastante a governar o nosso dia a dia e diminuir a distância daquelas pessoas que gostaríamos de estar perto, até porque a coisa pode ser resolvida com uma chamada de vídeo, quando muito, uma ligação ou melhor ainda, um stikers. Se nas primeiras edições, Black Mirror nos apavorada com a sua ilusão criativa ou o filme Her parecia impossível, hoje em 2025, IA dá uma surra em "Eu Robo". Nos acostumamos com a tela preta. Esquecemos o espelho preto. Somos aquilo ali principalmente se a câmera está ligada e somos outra coisa quando desligamos porque ser uma grande personalidade do TikTok é o único jeito de sermos uma subjetividade realmente reconhecida.


Não vamos esquecer de que tudo isso um dia foi imaginário. A pouquíssimo tempo atrás alguém diria que faz ligação, mede batimentos cardíacos e faz pagamentos por aproximação em um relógio, seria taxado de louco.


Por isso que essa conversa ainda é sobre as pactuações imagéticas e sensoriais que fazemos com o imaginário porque muito do que a gente cria, perpassa pelo corpo, pela possibilidade, pelo "e si".


Quando nos falam dessas engenhosidades como algo revolucionário, esquecemos que o iPhone, o TikTok, o filme Her e smartwatch são elementares para sustentar a hegemonia do capital. Facilidades radicalmente criadas para nos fazer crer na magia da felicidade, no encantamento do parecer ser "rico", no bem estar, na expulsão da solidão, no poder ter para poder ser.


A euroocidentalidade passa pelo modo de produção das indústrias, do saber e das tecnologias - isto é, o fazer para o consumo e para a obsolescência programada - acaba girando em nós uma sensação de improdutividade, ignorância e cansaço, até porque não acompanhamos a velocidade dessas engenhosidades e nos sentimos minadas e reduzidas a seres impotentes.


Mas o plano material da vida está longe de ser saciado pelo consumo. Quer ver? Você abre o TikTok e vê determinada blogueira usando a roupa X da Shein e fazendo a sequência de treino Y na academia. Influenciada por ela, você corre na Shein compra a tal roupa, se inscreve na academia. Até aí tudo lindo. O plano da influencer funcionou e a sua saúde tende a melhorar. Mas ao chegar lá, ao invés de procurar o instrutor e estabelecer metas conscientes para o seu bem estar e estrutura corporal, você liga a câmera do celular e começa a gravar a sequência de treinos até ficar igual o do TikTok que você viu mais cedo. Que ótimo! Dez minutos depois do vídeo sair, a academia ficou desinteressante demais e você vai embora.


Esse aparato, codifica a nossa experiência do real e o nosso corpo se adequa entendendo a padronização como algo que nos faz pertencer. Ocorre que ver a vida de forma unidimensional, nos faz perder fragmentos e atentar ao nosso campo sensorial. Será que ao ligar o celular para imitar a influencer trouxe para você conexão corporal do peso que você levantou, da energia que você gastou e das inclinações que seu corpo precisou fazer?


Mas tirando esse exemplo corriqueiro e bobo, do que estamos falando quando a multi dimensão para aquela pessoa que passa 12 horas fora de casa sendo quase 4h só em deslocamento? Será que o cansaço físico já não é o bastante? E daquela mulher trans que trabalha de caixa de supermercado e tem que aguentar olhares agonizantes toda vez que diz "próximo"? Será que o barbeiro da sua quebrada está pensando nesse papo filosófico de "desmantelar o mito da história única"?


Pois é, o problema que os valores ocidentais se injeta tanto nas relações da macroeconomia, isto é, na produção em massa da roupa da blogueira que vem direto da China, do acesso ao iphone que vem dos EUA como "ponta de estoque" e da mensalidade que você paga na academia porque o lógica universal está na forma como a gente enxerga o valor das coisas e das pessoas. Se aquelas 12h fora de casa, servem aos interesses da economia social do trabalho, determinando quem vai lucrar e quem vai ralar; se o corpo e o comportamento da mulher trans do caixa do supermercado, são hiper-regulados; se o barbeiro não tem sequer tempo para elaborar a sua própria "condição empreendedora" sendo na verdade classe trabalhadora, é porque as funções de quem é regulado e quem regula enclaves dentro da lógica universal, criando um apanhado de normas jurídicas, econômicas e sociais para (des)mobilizar a forma e condição de como determinados corpos vão (não)mover social, sexual e racialmente.


Portanto, falar em multidimensão é desabilitar do nosso imaginário a ideia rígida de que só há um jeito de viver, de modo que é estrutural organizar arranjos outros. Do contrário, a eurocentralidade vai continuar determinando o jeito que a gente come, reza, compra, produz, escreve,



4 - Arriscar caminhos inventivos que nos afaste das experiências geracionais de medo, escassez e sofrimento


Começo esse trecho com o verbo imperativo "arriscar" ciente de que há uma linha temporal da qual não temos agência, pois o tempo pretérito das experiências de nossos ancestrais já transcorreu. De outra sorte, precisamos acionar a memória corporal, histórica e coletiva de pessoas que vieram antes de nós para assentar o chão que pisamos hoje, até porque a terra é viva e palavra dita produz efeitos reais, seja de amaldiçoamento, reza, feitiço ou criação.


Por isso mesmo, ao fazer alusão a história de nossa ancestralidade, precisamos arriscar caminhos investivos, de maneira que isso não esteja associado a uma frase de afeito, pela contrário, seja um mantra que nos ajude a despertar. Ao acionar o imaginário, reivindicamos a alteração do real que há séculos estabeleceu a distopia como a ordem do agora para muitos de nós. Explico: É normal uma mãe negra enterrar um filho de 07 anos? Um jovem negro de 21 ser confundido e baleado violentamente na frente de outros civis? Devemos dormir tranquilas quando uma criança negra é privada de abordar por ter sido vitima de violência sexual por seu padrasto? E uma senhora negra surda ter sido mantida em cárcere privado por mais de 30 anos em condições análogas à escravidão? Uma professora negra que passa em um concurso público em primeiro lugar ser impedida de tomar posse porque os colegas brancos entram com a anulação do concurso, mesmo quando essa esta professora passa em primeiro lugar, por mérito, na frente dos 9 outros candidatos, será que a distopia não está em curso?


Precisamos ter cuidado para que a ética dos imaginários não esteja vinculadas a sequência de desgraças, e que o nosso único plano de existência seja a distopia já experimentada no cotidiano, uma vez que as estáticas de todas as ordem já nos indicam racismo climático, racismo institucional, racismo estrutural cujo produto é o genocídio, a evasão escolar, a violência obstétrica, a violação de direitos básicos e fundamentais e o destemperamento do nosso organismo mental, só para ficar em alguns exemplos.


Romper com a distopia a partir e dar atenção para outros imaginários, requer um encontro com a nossa força motriz, no sentido de que os caminhos oníricos também sejam grandes mapas para a emancipação do nosso eu expandido, ou seja, o nosso eu e (inter)subjetividade, buscando encontro com a própria história subjetiva mas resgata em si e em sua ancestralidade os caminhos de volta para casa.. De outra forma, o caminho seria o do Narciso, aquele que só olha para si e se alimenta de si.



5 - Abandonar estéticas instagramáveis e admitir que a vida não pode ser editada


O Instagram instaurou uma forma própria de fotografar a vida: diagramação do cotidiano, simular as emoções, editar imperfeições e descartar o que não é necessário. O conflito ético do imaginário se acentua com força nesses parâmetros instagramáveis porque depois deles nossos erros e imperfeições viraram "pecaminosas", já que nesse conjunto ético a gramática cristã e a regulação moral tomam forma. Por isso, o que merece ser deletado é aquilo que não pode ser adequado a essa diagramação pré-montada. E se insistir em se expor, é garantia de cancelamento.


O que segura o esgarçamento moral ainda é a captura fiel dos seguidores enlouquecidos, atrás do exagero, daquilo que só teríamos coragem de falar na terapia, mas agora viraliza porque foi contado em primeira mão e é bom porque entrega view, vai parar no "for you" e te coloca em destaque. A sensação? Só você viu, foi exclusivo até os comentários e o número de curtidas revelarem o contrário. Muita gente, ou pasmem, ninguém viu ou comentou.


Se tem comentários, a vida fica mais divertida. Os comentários não passa pela mediação do Video Show ou do TV Fama porque agora todo mundo brinca de ser famoso e a qualquer momento pode aparecer na página do Leo Dias e nesse novo arranjo seguimos pactuando com a hiper interação porque agora falar direto de alguém que era só famoso ou que pretende ser, ficou facinho.


E se Matrix assustava os veteranos tecnológicos, o Instagram não assusta mais. Na verdade, o editável é bom porque polariza, escandaliza, mas passa. Se virar notícia, daqui dois dias, ninguém lembra e com isso vai junto: crise climática, chacinas de jovens negros, a prisão de Bolsonaro. Virou tudo notícia antiga. E isso escancara a nossa fragilidade, o nosso descompromisso e desinteresse porque o editável permite sobreposição de histórias mais interessantes. Mas será que essa vida das notificações que nos causa dentre outras coisas aceleração dos batimentos cardíacos, falta de ar, desconforto intenso e tremor está valendo a pena?


Fico pensando nas minhas professoras de antropologia dizendo que é preciso ter cuidado para não chapar a experiência humana e é verdade. Não dá para dizer que todo mundo que está com o celular na mão ou alguma outra tela aberta nesse momento, lendo esse texto está passando por episódios de ansiedade e crises de pânico. Isso é sinal que os sintomas ainda não viraram o tal do mau estar social e que ainda é reversível abrirmos mão da intensa vida on-line e que a vida fora das telas ainda permite muitas incertezas, erros e confusões, certo? Espero que sim. Que ainda dê tempo de recuar do cancelamento porque se é certo que não vamos mais admitir retrocessos nos machismos, homofobias, transfobias, racismos dentre tantas violências orbitando nas nossas vivências e ceifando as nossas experiências, não vamos editar as nossas falhas para caber em lugares que nunca nos quiseram sequer vivas.

A canalhice de estéticas instagramáveis é que lá tudo cabe, somos as divas, poderosas, bafônicas, maravilhosas em lugares que na vida sem edição somos massacradas. Então se for para mostrar que seja sem filtro ou edição.


Precisamos aprender onde colocar muros e onde continuar a travessia. Não somos pessoas parecidas, pasteurizadas por um filtro que cabe em muitos rostos. A desinstalação do dispositivo mental que nos massificou na experiência precisa acontecer especialmente para que possamos desviciar a nossa força motriz, que na essência, é criativa. Apesar da mecanização fisiológica do nosso corpo: tomar água, nos alimentarmos, produzir e dormir; a nossa existência fracionada no tempo nos existe descompromisso com a funcionalidade. Somos etéreos, lunares e ensolarados, portanto, um sopro no tempo que precisa se dar o luxo da desconfiguração, ou seja, reaprender que podemos ser desconjuntados e contemplativos.


Se continuarmos entregando todos os estímulos sensoriais as telas, o que restará de nós fora das redes? As nossas emocionalidades precisam ser recarregadas e tempos desertos que nos permita sentir dúvida, ambiguidade, contradição e auto gestão do que nos afeta fora das redes, até para nem tudo seja frio como em uma tela. Nosso corpo precisa ser atravessado, inundado, resgatado e reorganizado sem edições.

6 - Atentar a planos invisíveis que já estão dentro do nosso cotidiano


Muitos de nós dorme todos os dias e sonha. Embora as condições oníricas andem comprometidas pela ansiedade, pelos boletos, pela poluição sonora, pela quantidade de telas, pelas luzes da cidade, pela preocupação se um dos nossos vai chegar em casa com vida, sonhar (para quem tem tempo) ainda continua sendo um mecanismo fisiológico e cerebral de resistência da nossa ancestralidade. Esse é um tema que temos o imenso prazer de ouvir constantemente Ailton Krenak e Sidarta Ribeiro falando, com abordagens diferentes mas complementares: pela cosmovisão dos povos originários e pela ciência, sem contar toda a produção de Freud quando faz a análise psicanalítica do sonho a partir de um desejo não realizado.


O sonho é um mecanismo interno que funciona como uma bússola imagética, potente a tal ponto que recusa a subordinação mecânica do cotidiano, por isso é carregado de códigos que desobedece o plano do real, reunindo elementos de diferentes setores e de vários momentos de nossas vidas.


Os sonhos estão em sintonia com que Leda Martins sustenta: o tempo saltitante como bailarina e espiralar, já que vai e volta, muda os seus personagens, promove encontro com pessoas que estão nesse plano ou em outro completamente desconhecidos e inventa novas figuras, imagens, cenários, pessoas, expressões e emocionalidades.


Tudo isso é muito particular. Por isso que desvendar os códigos oníricos, é estar atento a multi dimensão da qual o corpo já vive todas as noites, mas na ordem do inconsciente. Mas como aderir a esses princípios na nossa prática sem assumir um lugar delirante?


Compreendendo-os como ferramentas que nos pedem exercícios especulativos e alianças concretas, assim como fizeram os quilombistas e os panafricanistas e que hoje ressoa nos e nos afrofuturistas.


A ordem do real tem nos sufocado, por isso romper com ele é urgente, dando uma rasteira na desgraça coletiva e fazendo o que os nossos ancestrais fizeram de melhor: magnetizar novos sentidos e expandir campos sensoriais. São esses caminhos que criam bússolas imagéticas como os roteiros ilustram para nós nos nossos sonhos todas as noites.


Perceba que imaginar não é viver em estado de negação do presente ou sequer paralisar frente a realidade fixa, mas compreender que as possibilidades nasceram da força criadora interna, de um plano mental que não se desassocia do corpo.


Precisamos nos desobrigar a viver de forma obsessiva sobre aquilo que nos que nos disseram sobre nós, pois nos empurraram para um abismo de inseguranças e medos, nos tirando a capacidade de devaneio e movimento. Por isso, compreender que processos profundos começam com mudanças socioemocionais e que precisam encontrar eco no corpo coletivo, nos ajuda a criarmos ficções sensoriais que produz efeito no plano do real.



Essa bússola imagética e estética e sensorial é o que constitui então o caminho para o imaginário, certa de que lidamos com a corda bamba entre o possível e o impossível, visto que no plano concreto a subjetividade negra é interrompida em suas dissonâncias. Por outro lado, a cada marcação no nosso corpo daquilo que nos impulsiona, sentimos o deslocamento e transformamos a a concretude mortífera, abrindo espaços para dançar com o tempo numa outra linguagem, dimensão e organização.



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©2025 por Monique Rodrigues do Prado

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