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Ensaio sobre a desalienação do negro: caminhos para uma intersubjetividade africana

  • Foto do escritor: Monique Prado
    Monique Prado
  • 12 de out.
  • 4 min de leitura

Há uma trajetória longa quando o tema é a alienação do negro cravada historicamente em autoras e autores negros que percorreram o caminho da cultura, da linguagem, da psiquiatria e da psicanálise os quais seguiram por várias esferas para falar da condição ontológica, emocional, mental e emocional da subjetividade negra.



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No campo da cultura, as imagens coloniais foram desenhadas como forma de arrancar essa pretensa subjetividade, retirando do negro, então africano em diáspora, o potencial humanístico de tudo que lhe pertence: corpo, saber, afetos e afetações. O encargo de ser colocado como um ser desprovido de epistemologia foi propositalmente construído para rebater qualquer devaneio de que o negro teria condições de criar a sua própria filosofia, história, medicina, etc, ainda que a história dê conta do contrário.


Quando o negro em diáspora fundamenta um terreiro de candomblé aproveitando todos os conhecimentos de matriz bantu (congo-angola) criando um saber assentado na vida e na experiência corporal, combinando aspectos de reconhecimento, subjetividade, coletividade, ritualística e cura, percebemos que a negritude múltipla tal como ela é recriou para si pactos de vida, ainda que dentro do horror experimentado nas condições impostas pelo colonialismo.


Ora, se ser negro no universo branco, diz respeito a degradação e desencontro com o próprio corpo e subjetividade, uma vez que o sequestrador europeu deu destaque a sua própria ontologia em detrimento da desorganização étnica e intersubjetiva do negro, o que nos resta é perguntar como sair das entranhas traumáticas da denegação da existência e caminhar para a desalienação.


Quando comecei a pensar nesse ensaio, muito mais do que a própria alienação e a desalienação, me perseguia a seguinte pergunta: como se reorganizar psiquica, emocional, histórica e coletivamente?


A posição opaca do ser-não sendo criada pelo colonizador atravessou séculos e produz efeitos reais no cotidiano de uma pessoa negra. Quero dizer: o paradigma de ser reconhecida somente como negro distorce o que é alcançar o status de humanidade, já que a humanidade, como nos alerta Aimé Césaire, é condição intrinseca do branco e isso está previsto tanto na condição do que é o Estado, como explica Achilli Mbembe e Silvio de Almeida; quanto nas entranhas da linguagem e subjetividade como nos apresentou Franz Fanon e Neusa Santos.


Além disso, uma subjetividade atrelada a humanidade branca se desloca do plano concreto quando percebemos que ainda como "negro", há uma dificuldade em compreendê-lo como multifacetado em suas raízes ontológicas, já que não há como desalienar o negro sem reconhecer a própria morfologia da palavra; isto é, ser "negro" é uma estratégia colonialista de massificação e opacidade. É o não-ser sendo. O "outro" investigado por Fanon, Grada Kilomba e Letícia Nascimento em três nuances muito diferentes: a paradigma com o branco; o paradigma com o homem e branco e negro, além da própria mulher branca; o paradigma com o homem branco, a mulher branca, o homem negro, a mulher negra, respectivamente, como se a cada adjetivação decorrente do "negro" fosse uma forma de arremessar uma pedra no estômago do colonizador.

Ocorre que, apenas o reconhecimento da violência histórica na ontologia da sujeição do negro, não basta para a intercorrência de um outro movimento: a valorização do negro divorciando-se do histórico polarizador de existir somente em condição de outricidade. Assim, Beatriz Nascimento buscou investigar de uma forma muito sensível "o negro visto por ele mesmo" como e na vanguarda da subjetividade do negro em diáspora se voltou para os quilombos; dando uma resposta que talvez nem a psiquiatria e a psicanálise fossem capazes de compreender: a leitura de uma intersubjetividade fundada em princípios territoriais, espirituais e estratégicos que se voltam não a denegação de sua condição no contexto do colonialismo, mas a completa ruptura imagética. Explico:


O quilombola retratado como desobediente, fugitivo e pecador - já que o colonialismo era uma ordem institucional econômico-social catolizada - é apresentado na obra de Beatriz Nascimento em um outro esquema, qual seja, um organismo vivo capaz de desafiar àquela ordem econômica, moral, carnificina e jurídica degradante do que era ser africano. Nesse sentido, é preciso olhar para os quilombos como uma forma direta de interrupção da imagem do que é ser negro.


Encontramos então em Abdias Nascimento uma formulação pan-africanista de caráter filosófico, ideológico e fundamentalmente disruptivo: o quilombismo, conceito que estava em dialogo com o conceito de negritude, como uma maneira sofisticada de se reinventar a partir de eixos e pactuações que respeitem a africanidade (universal) e a diáspora (geográfica, social e espiritualmente falando).


Apoderar-se do que é ser negro na sua dimensão mais profunda e olhar para o seu potencial resiliente de se fazer em outro território, a principio, completamente hostil na linguagem, nos costumes, nos hábitos, nas condições de trabalho, na criação de vínculos e condições materiais, fez com que o negro aprendesse sobre agenciar a própria existência no campo da ontologia e da epistemologia.


É de se saber que o encargo pela sua própria desalienação sempre foi alto e continua sendo, uma vez que o não-ser (outrização) é uma realidade imposta pelas condições sistêmicas: o capitalismo, o patriarcado branco, o aparthaid social vivido na pelo do negro.


Com isso, a subjetividade negra não é deslocamento e ambiguidade, pelo contrário é de movimento criativo; já que acumula elementos ancestrais que estão organizados em cada um de nós que honra a mentalidade do primeiro quilombola que fundou a sua existência em territórios brasileiros, apesar do medo, da dor, da desproteção, das ausências de todas as relações que precisou compulsoriamente deixar para trás.


A desalienação negra não se basta no campo da singularidade e do individualismo como nos querem fazer acreditar com as quinquilharias do capitalismo tosco. Até porque mesmo na melhor das constituições, o Estado de Bem Estar Social e os direitos previstos no  Art. 5º , quais sejam: à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nunca nos alcançou.


É preciso que a nossa gente tome contato com a nossa negritude tal como ela é: carregada de um compromisso profundo com a ruptura do estado de alienação e que ao adentrar a esse caminho, possamos compreender o imaginário como ferramenta utilizada por cada ancestral nosso que imaginou reatar os nossos laços com as nossas raízes de corpo, movimento, oralidade e reza. Foi e é assim no Quilombo, no maxixe, no samba de roda, na capoeira, nos reinados, nas congadas e nos movimentos civis organizados.


Que a gente reconheça a Amefricanidade de Lélia Gonzalez como parte da nossa intersubjetividade em que a cosmologia africana seja nos guie de volta para casa, mesmo quando a casa começa nosso plano mental e emocional.


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©2025 por Monique Rodrigues do Prado

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