Pacto narcísico: engajando homens brancos.
- Monique Prado

- 24 de nov. de 2021
- 7 min de leitura
A universalidade humana elegeu o homem branco como suprassumo. Aza Njeri fala do senhor do ocidente e o materializa na figura de Leonardo Dicaprio como aquele que tudo pode e não será punido, visto que tem a subjetividade autorizada.

Na realidade brasileira, mesmo que por muito tempo se tenha negado a existência de uma sociedade assentada em um contrato racial, o homem branco esteve majoritariamente em cargos de prestígio e poder como nos bancos universitários, nas direções acadêmicas, nos cargos públicos de alto escalão do Executivo, Legislativo e Judiciário, além de ocupar as cadeiras nos conselhos e direções das grandes instituições e empresas.
No homem branco há uma naturalização forjada de ser humano, ou seja, ele é sujeito pleno e outro que é o racializado. Entretanto, essa foi uma construção muito bem constituída para fazer supor a neutralidade racial desse homem justo, bondoso, bonito e admirável por todos. As figuras do padre, do pai de família, do filósofo-pensador, do reitor, do presidente, do empresário, do juiz, do banqueiro, do professor, etc... foram sendo consolidadas no imaginário social para instituir poder e controle por parte desses homens.
bell hooks quando adota a pedagogia crítica como prática aproveita os ensinamentos de um dos maiores humanistas do mundo: Paulo Freire. Assim como o pensador, a autora sustenta que o ensino precisa ser uma prática libertária, construída em comunidade e que leve em consideração a multiplicidade cultural. Ela acrescenta ao pensamento de Freire a importância de fundar o ensino em bases de gênero, raça e classe, considerando que o próprio Freire era um homem branco , o qual não considerou gênero e raça em seus estudos.
Com efeito, essa pirâmide formatada para alocar o homem branco acima de outras existências não só gerou problemas sérios no tecido social para outras subjetividades raciais, tais como: a escravidão, a racismo, epistemicídio, a desigualdade sociorracial e econômica, bem como o encarceramento em massa da população negra, como também problemas para o próprio indivíduo que ocupa tal posição, pois poder e prestígio não será alcançado por todos.
A frase "os homens amam os homens" nos lembra o conto de Narciso que se apaixonou pelo próprio reflexo. Se o homem branco vive para si, produz intelectual e economicamente e cria para si, mas vive em sociedade, é cristalino que ao longo do tempo esse choque racial iria eclodir.
O símbolo do homem branco poderoso, rico e intocável é uma métrica muito alta em uma sociedade que se organiza pelo capitalismo, pois a grande massa popular são de pessoas trabalhadoras. É bem verdade que as capas da Forbes não deixam mentir que os homens mais ricos do nosso pais e do mundo são de homens brancos. É o que também demonstra os dados do IBGE quando aponta que os 79% dos homens ricos são brancos, muito embora eles representem menos de 1% da população brasileira.
O Dicaprio de "O Lobo de Wall Street" é de fato para poucos, pois a acumulação de riquezas fruto de herança e benesses do mercado financeiro deixarão apenas esse 1% no topo da pirâmide social.
Entretanto, quando Cida Bento pensou no "Pacto Narcísico da Branquitude", ao estudar as contratações nas grandes corporações, identificou o padrão de chamar para o clã apenas os seus pares, ou seja, o narciso que se apaixonou pelo próprio reflexo contrata homens brancos e forma uma teia de pensamento homogêneo alavancando e dando acesso aos seus.
Se de um lado os homens brancos chegam a ganhar quase 3x a mais do que mulheres negras e ainda ostentam socialmente uma posição de conforto econômico-social dentro dessa massa cinzenta que é a classe média brasileira, de outro lado, o homem branco enquanto representação virou uma chacota histórica, desmascarado como aquele que causou grandes danos para a experiência humana: guerras, autoritarismo, colonialismo, escravidão, , holocausto, extremismo, genocídio e epistemícidio, para dizer alguns.
Há de se reconhecer então que existem muitas categorias desses homens: os reacionários e negacionistas que fazem os números de feminícidio aumentar e elegem um fascista no poder, porque não querem perder a sua condição de "meninos mimados da nação".
Há também os que se pretendem bons porque "até tem um funcionário negro" no seu quadro funcional ainda que nos cargos de base ou terceirizados e, portanto, isentos de qualquer culpa.
Há os que consideram a sua babá ou empregada doméstica "quase da família" ou que tem um "melhor amigo negro" que será utilizado como "token" para se salvaguardar de seu antirracismo, mas que na verdade preserva a sua brancura. Esse perfil aparece nas novelas e nos filmes, mas estão perto do que a gente imagina quando na primeira oportunidade ventila a sua ascendência italiana, alemã, holandesa ou espanhola.
De outro sorte, é certo que nem todos os homens brancos foram responsáveis por essas atrocidades históricas, ou seja, mesmo quando estão perpetuando os seu privilégios sendo aqueles que estão na quinta geração de graduados na família ou quando possuem casa própria ou emprego fixo, reconhecem a importância da temática racial e dizem inclusive ter "pânico" ou "medo de ser cancelados" por serem homens brancos, visto que na conjuntura atual as vezes se discute branquitude na mesa do bar.
Se considerarmos a ignorância como uma grande aliada da vontade de aprender e nos orientarmos na literatura de bell hooks quando apodera-se da literatura de Freire em uma pedagogia libertária e transgressora, sentimos algum grau de esperança para desarmar essa cama de gato.
Assim, àqueles homens brancos que saem da zona de conforto e assumem uma postura pró-feminista, antirracista e anticapitalista é elementar compreender que alguns exercícios precisarão ser feitos.
Enquanto homem branco, é crucial reconhecer a existência do próprio racismo e/ou qualquer tipo de privilégio frente a outros grupos e não manter a retórica: "meu avô era imigrante italiano e teve que ralar muito para a gente ter o que tem hoje". Essa é uma frase descolada do projeto racial brasileiro que fomentou a entrada de imigrantes europeus através do decreto 528 de 1890 com incentivo financeiro, terra e sementes no inicio do século XX para promover o branqueamento, pois os eugenistas acreditavam que a mistura das raças teria como consequência a brancura total dos brasileiro dentro de cem anos, mas como sabemos, com o resultado de 56% da população negra, eles estavam completamente enganados.

Por outro lado, dois anos antes com a abolição inconclusa, o que se viu foi o cerceamento à terra, a educação e o inicio do encarceramento em massa da população negra, fenômenos que foram apagados ao longo da história para isentar a branquitude de reparação histórica.
Nas dimensões psicanalíticas Grada Kilomba na obra "Memórias da Plantação" elenca os estágios da branquitude frente ao seu próprio comportamento narcísico. A negação, a culpa, a vergonha, o reconhecimento e a reparação são esses cinco estágios.
A alienação psíquica é então parte da negação onde o sujeito branco sustenta sua imagem de neutro e igual aos outros sujeitos racializados utilizando argumentos como "consegui isso por mérito", "esse negócio de cotas não passa de privilégios", "o racismo é mimimi", argumentos vazios que atrapalham no avanço da discussão, pois o racismo tem base histórico e se espraia na estruturalmente nos campos econômico, jurídico e social.
No estágio da culpa o sujeito branco percebe que ele interfere nas outras subjetividades de maneira a sentir uma desconforto, uma angustia e necessidade de olhar para o seu próprio reflexo para buscar entender quem é esse tal de narciso que estão dizendo que ele é. O homem branco ainda está ensimesmado e a compreensão subjetiva dos sujeitos racializados ainda é restrita porque ele está carregado de remorso de coisas que disseram que ele fez.
A vergonha deixa de ser somente desconfortável, pois ela traz com ela um sentimento de indignação. Nesse sentido, ela transborda a dimensão subjetiva e passa a ser produtiva para desarticular o espelho da brancura em que ele se viu ao longo dos anos e passa observar as práticas do próprio racismo enraizado.
No penúltimo estágio, qual seja, o reconhecimento o sujeito branco identifica os acessos que teve e privilégios de ordem simbólica e material. Os primeiros têm relação com as representações estéticas, imagéticas, midiáticas e do audiovisual em que a vasta produção mostra homens brancos como fortes, poderosos e detentor do conhecimento. A tônica dos privilégios materiais têm a ver com os bens, os acessos à educação, a saúde e moradia e
circulação de renda que perpassa de geração em geração as famílias brancas.
No reconhecimento o branco se coloca como parte do problema a ser enfrentado. Isto é, age criticamente quanto a herança branca que lhe constitui e observa as suas ações pretéritas, ou seja, quando ele destratou alguém por supor que esse sujeito era de uma classe social e/ou profissão subalternizada pautada na cor; quando ele falou do cabelo, dos traços ou da cor de alguém ventilando racismo recreativo; quando ele presenciou comportamentos e piadas de conotação racial e ficou inerte; quando ele a vida toda esse homem branco leu somente outros homens brancos como ele e por aí em diante.
A tomada de consciência de que essa herança cultural e/ou material advém do pacto racial é fundamental para alcançar o último estágio: a reparação. Não se espera que seja devolvido tudo que materialmente ao longo dos séculos foi acumulado dentro de suas famílias. Pelo menos não por parte dos indivíduos, pois as ações reparatórias demandam participação do estado que desenvolve políticas públicas como ações afirmativas, por exemplo. Na esfera individual, a reparação tem relação com ações práticas.
Isso me lembra o professor do cursinho que dentro de outras tantas professoras pretas intelectuais, compõe o corpo docente como o único homem branco que devolve todo o seu conhecimento adquirido ao longo dos estudos acadêmicos advindos de universidades públicas e estrangeira.
Com efeito, após admitir que há privilégios é necessário tomar decisões que extrapolem a vergonha e o reconhecimento. Um bom começo certamente é ler autoras negras; consumir de pequenos negócios de pessoas negras, seja na aula de inglês, nos comércios e estabelecimentos ou na contratação de advogadas, contadoras e dentistas negras. Além disso, interromper o silencio da sua própria branquitude e sair da inércia mesmo quando for para ficar fora da "brotheragem" em rodas ou conversas entre amigos que se pretendem "desconstruidos", mas são demasiadamente racistas.
Em uma escala maior, apoiar projetos de pessoas pretas que estão enxugando gelo frente a ausência do Estado como a Coalizão Negra Por Direitos, Cufa, o Instituto Marielle Franco, Educafro, Uniafro ou qualquer instituição que esteja a frente das discussões e ações das temáticas raciais, pode ser um bom caminho para demonstrar o seu apoio à igualdade racial.






Comentários