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Elaborando os nossos afetos: o aquilombamento entre mulheres negras

  • Foto do escritor: Monique Prado
    Monique Prado
  • 26 de ago.
  • 6 min de leitura

Durante a minha pesquisa de mestrado a configuração de um conceito que ousasse elaborar as afetividades, foi o que me tomou noites de pesquisa e formulações, ciente que o amor ocidentalizado já não é/era tão palatável nas experiências cotidianas de mulheres negras na diáspora, visto que o acúmulo de opressões de gênero, raça-etnia, classe, território, muitas vezes vai na contramão desse sentimento.


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De outra sorte, se a historiografia hegemônica vai pensar os processos de aglutinação e sociabilidade de pessoas negras pela senzala, a negritude está se elaborando coletivamente através dos quilombos, proposto por Beatriz Nascimento como uma sociedade organizada alternativa de caráter político-social com valores diferentes da cultura dominante, o que possibilita a pessoa negra se afirmar como autônoma, resultando em uma forma de articulação que extrapole a sua concepção original, sendo uma forma de arranjo que desencadeia relações profundas no contexto da diáspora africana.


Se amar é verbo como nos ensinou bell hooks, aquilombar significa valorizar os arranjos socioafetivos que se deram na diáspora afro-brasileira em que a performatividade do corpo negro se elabora em cima do saber epistemológico das experimentações e afetos à luz do que elaborou, ou seja, esse senso de famílias estendidas ou redes aquilombadas, contribuem para motivar decisões e realizações internas e coletivas, desenhando outras formas de agenciamento da própria subjetividade em que a força vital e as pulsões internas serão elaboradas dentro das redes de afeto aqui recriadas.


Expandimos para o jogo de palavras “redes de afetos” no plural, o que nos direciona para um pensamento africano cunhado na experiência dos afetos que não se basta no indivíduo, pois se somos afetados, tem quem nos afete, por isso, a perspectiva relacional da comunidade que nos cerca é crucial. Portanto, na encruzilhada dos afetos, raiva e amor não estão em divórcio; pelo contrário, fortalecem o crescimento individual e coletivo do grupo.


Essa dialética entre subjetividade e corpo coletivo é traduzida como uma forma de pensar como nos olhamos enquanto pessoas pretas, saindo de uma sombra do ideal do ego branco na relação íntima, assim como a nossa relação com o outro, razão pela qual, as supostas contradições vão aparecer como a própria história do negro. Nas sociedades bantu os afetos não são somente um estado emocional, mas energia de circulação e fruição que potencializa a existência.


A ambivalência é algo natural das relações, cujo convívio permite a circulação dos afetos ora pela excitação, ora pelo choro, ou pelos dois. Isto se traduz em fortalecimento dos laços, já que estar em uma configuração que é possível ser quem se é, é uma forma de fugir de molduras subjetivas cisgênera e branca.


A perspectiva relacional entre “muntu” (pessoa), natureza e vida e os sentidos que possam permear a experiência em coletividade (bantu), desde que o ser tenha consciência da sua identidade e história, bebendo da força vital do seu estado de natureza para produzir sentido a vida.


Essa noção dos afetos é de uma sofisticação tamanha pois, ao mesmo tempo em que se percebe a pessoa em suas acepções internas, se valoriza o entorno. Isto é, como nos ensina Henrique Antunes Cunha Junior o prefixo NTU, reconhecido como princípio da existência de tudo, diz-se sobre a qualidade, natureza ou estado da sua força ou energia interna, ou ainda como sustenta Mogobe Ramose um substantivo verbal que pressupõe a transformação e o movimento.


Renato Noguera, estudioso das filosofias africanas explica que para os povos bantos, a cura está implicada no desejo de ver a comunidade bem, umuntu ngumuntu ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas), de modo que o autorreconhecimento e a capacidade de desfrutar de todas as potencialidades humanas fortalece além do individuo “muntu” também, por consequência, a comunidade. A base desse princípio está assentada em três dimensões: os ancestrais, os que estão vivos e os que ainda não nasceram.


Pertencer espaços negros que nos cercam, como a roda de samba, transmite ensinamentos muitas vezes de ordem sensorial, prático e não dito pela palavra, isto é, trazido pela oralitura. que Audre Lorde nos ensina sobre o os usos do erótico, definindo-o como um recurso intrínseco de poder que advêm dos nossos conhecimentos mais profundos, ou seja, a amor em todos os níveis de compreensão.


Esse erótico como uma força vital das mulheres que as eleva, sensibiliza e fortalece, além de pulsar a energia criativa de cada uma delas que transcende o aspecto físico-sexual, mas as conecte com as emocionalidades, a força intelectual e psíquica, justamente como uma capacidade de sentir em todas as suas dimensões que ultrapasse a força destrutiva de uma sociedade racista, patriarcal e antierótica, isto é, a roda de samba como uma política de fortalecimento mútuo entre mulheres sambistas.


A roda de samba, tem relação direta com a presença material em que o corpo é via de entrada dos saberes ali transmitidos, o que cria esse fluxo circular das ritualizações de matrizes africana, sendo comum a integração entre corpo e a história que dançam nesse jogo cênico como nos ensina Tássio Ferreira.


Precisamos passar pelo campo estético, simbólico e semiótico da roda de samba; isto é, investigar como o samba ensina sobre memória, pertencimento e afetos para compreender como se tecem as redes de afetos entre mulheres negras no universo do samba. Essa proximidade com o público ilustra como o ambiente do samba cria uma ritualística propícia para que esse corpo coletivo sinta um clima acolhedor e de pertencimento que tem relação direta com a ancestralidade africana. Assim como em outras manifestações da cultura popular, faz parte do samba, uma difusão entre quem está na roda central e quem está em volta, de maneira que essa roda vai se desenhando na configuração de uma espiral ou uma teia.


Assim como nos ensinou Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves e Eliana Alves Cruz em obras como Um defeito de cor (2006), Becos da Memória (2017) e Água de Barrela (2018), respectivamente, a imaginação é um instrumento poderoso para reconfiguração de personagens históricos que não aparecem na história oficial. A metaficção historiográfica (Silva e Santhiago, 2024) é um mecanismo literário narrativo, construído para suprir as lacunas de histórias silenciadas, confinadas, marginalizadas ou apagadas, cujo artifício é a imaginação, a especulação e a revisão crítica de fatos históricos.


Notamos que a roda de samba vai nos dando ferramentas imagéticas e criativas para imaginários possíveis de libertação e de outras existências na diáspora, pois se o colonialismo marginalizou muitos dos corpos que ali estão presentes, empurrando para as margens; quando estão em roda, essa teia mobiliza no corpo e na oralidade uma capacidade de partilhar grandes vibrações, o que é fator indispensável na construção individual, sem deixar de imprimir esforços para o bem estar coletivo, recuperando os férteis ensinamentos de diversos povos africanos que deixaram legado no contexto afrobrasileiro.


quanto a cura é um mecanismo organizador dentro do samba, visto que nesse espaço comunitário e seguro, mobiliza-se a força vital das pessoas envolvidas na roda e aquelas que já passaram por ela, as ancestrais do samba; compreendendo que a experiência e a intencionalidade de cada uma dessas pessoas contribuem para o todo. Por isso, a circulação de uma força motriz alimenta quem está no ambiente, gerando uma catarse coletiva, ou seja, o compasso do tambor com os demais instrumentos, a oralidade cantada, as gestualidades e performances, provocam a liberação das emoções que estão em curso no momento da batucada.


Essas ensinagens advindas do poder de estar em roda, não só no sentido literal, mas da criação de redes, é um lugar poderoso de manutenção dos saberes negros através de uma poética oral, corporal e instrumental, em que se valoriza a transmissão de saberes dentro de uma gramática dos afetos.


Colocar o próprio corpo em pesquisa e compreendermos a roda como movimento circular em que ora há a sua abertura, ora a sua interdição, para que se mantenha sendo um espaço seguro em que mulheridades sintam-se confortáveis em transitar, por isso ela aciona a noção espiral. Nesse sentido, a roda vira uma metáfora da vida que tem como cerne materializar essa rede. De igual modo, a roda aparece como um lugar de manutenção do sentir, da realização em coletividade, sendo, portanto, uma comunidade amorosa que se expande de dentro para fora


A reverência aos mais velhos, a descentralização, a instrumentalidade, o compartilhamento; os afetos, as sensações e emocionalidades, tornam para essas mulheres a roda de samba um lugar vivo de auto elaboração e pertencimento, o que atrai um público que passa a aderir esses valores e, portanto, compor essa comunidade amorosa.


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©2025 por Monique Rodrigues do Prado

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