O homem branco e a mulher preta
- Monique Prado

- 25 de nov. de 2021
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Os relacionamentos interraciais são discutidos ao longo da literatura racial: primeiro como um fenômeno desencadeado pelo colonialismo, onde mulheres indígenas e negras eram estupradas pelos escravocratas e depois, a partir do século XX como um instrumento apasiguador etnico-racial, onde supostamente o encontro de brancos, indígenas e negros confirmava a democracia racial brasileira. Mais tarde esse mito é desmascarado pelos indicadores que revelam desequilíbrio na experiência humana entre esses três sujeitos.
Fanon, em seu livro “Pele negra, máscaras brancas” dedica dois capítulos para discutir as relações interraciais perpassando por discussões como identidade, controle e poder.
O campo dos afetos pode parecer terra sem lei, onde não se pode dar pitaco, justamente porque o “amor romântico” é imposto pelo ocidente como algo dado e natural, ou seja, ao alcance de todo e qualquer um que queira experimentá-lo aos moldes dos contos, novelas e filmes que não medem esforços para interferir no imaginário social sobre o que é esse tal de amor.
É como se as insurgências sociais não influenciassem o amor e se você não está com alguém provavelmente não chegou a sua vez. Ou ainda, se você não conseguiu estar com alguém, é porque fracassou. A perversidade desse pensamento demonstra como as relações de poder e o capitalismo engendram o afeto ocidental, pois leva em conta o mérito de quem alcança o amor e quem serão os corpos dignos de serem consumíveis.
As subjetividades que acessam o amor devem merecer recebê-los, porque “amor não se compra, se escolhe”. No entanto, o que se observa é que os corpos relacionáveis são escolhidos a partir de critérios prévios, ou seja, são representados por essa super estrutura imagética como “puros”, “limpos” e afáveis.
O legado hegemônico de quem contou a história nos últimos séculos fez questão de figurar o senhor do ocidente como o sujeito universal como aponta Aza Njeri. Ela releva que Leonardo DiCaprio está no imaginário social como aquele que tudo pode e que certamente será plenamente amado, pois está no estágio alfa de humanidade. Na realidade brasileira as coisas não mudam, pois o paradigma de Dicaprio é o Rodrigo Hilbert, mesmo no país de Lazaro Ramos e Seu Jorge.
Não podemos esquecer que em um passado recente que desenhou o imaginário social em torno da mulheres negra tínhamos a hipersexualização desses mulheres a partir da figura da Globeleza.
De um lado, Rodrigo Hilbert como um homem, branco, mas não só, dentro dessa super estrutura imagética, Hilbert figura beleza, virilidade, sucesso e um sujeito completo que é marido, pai e ainda cozinha.
De outro lado, a Globeleza é traçada como a “gostosa” que ostenta beleza através de seu corpo quase nu e um sorriso lindo, mas que está na seara da diversão para essa branquitude, pois a sua subjetividade é interditada em outros campos, como na intelectualidade, no usufruto econômico e no afeto.
Dessa maneira, não há como dissociar todo o imaginário sobre esses dois corpos quando eles estão em uma experiência amorosa, visto que a carga histórica e social, penetra essa relação.
Frantz Fanon grifa que eles representam dois polos de um mundo, de maneira que a vida intima desse casal é atravessada pelo ideal de ego, poder da brancura e pela alienação psíquica do negro que muitas vezes tentará se embranquecer para caber socialmente nessa estrutura afetiva.
Ele vai dizer sobre o anseio de ser poderoso como o branco, essa vontade resoluta de adquirir as propriedades de revestimento, isto é, a parcela de ser ou ter que entrar na constituição de um ego.
A critica de Fanon não toca o sujeito negro em particular, mas releva o intercâmbio de dois mundos construidos pelo imaginário social de forma tão oposta. Causa um choque no primeiro momento para o próprio casal que muitas vezes partem de vivências muito diferentes e em segundo lugar pelo desprezo do pacto narcísico que não aceita socialmente esse casal.
Para mim foi um tapa na cara ler Fanon a essa altura do campeonato, pois me fez analisar as minhas experiências como homens brancos. As camadas de opressão acontecem cotidianamente e às vezes de forma sutil.
O âmbito público e privado é bem delimitado, o que significa que na maior parte das vezes você fica adstrita aos ambientes privativos e há uma exclusão dos setores sociais desse homem. A hipersexualização dos nossos corpos é aproveitada nessa conjuntura privada como se fôssemos máquinas, ou seja, o desejo pelos nossos corpos parte desse imaginário desumanizador da Globeleza que está ali para entreter, divertir e servir. O compromisso vem carregado de poder e condicionantes: “só me relaciono com você se for só entre nós dois”, “ninguém precisa ficar sabendo”, “podemos tentar uma relação aberta”. Caso haja uma interpelação desse homem branco sobre esse conjunto de opressões, o que aparece é a negação.
Iniciar uma D.R. sempre causa calafrios, pois desligar o telefone, sair andando ou silenciar o que você tem a dizer é uma forma de puni-la para mostrar “quem é que manda e quem obedece”. Isso me lembra a escravizada Anastácia de Grada Kilomba, a qual era interditada na sua fala por uma máscara de ferro pelo colonizador.
Ao ressoar essa frase “não estou no momento de assumir compromisso”, o que se percebe é a ausência de engajamento frente aos amigos, familiares e relações sociais quando a coisa vai ficando mais séria, pois ao ostentar uma relação com uma mulher negra, estar-se-á necessariamente aceitando uma visão de mundo “desconfortante”, em que inclusive renega o ideal de ego branco, o qual não se está disposto a perder, pois fazê-lo seria abrir mão do poder.
Um outro fenômeno recorrente é tentar negar que a conjuntura é de fato uma relação. Nesse momento o que se tenta fazer é atribuir a mulher negra a insanidade, ou seja, essa relação é algo “da sua cabeça”, pois “nunca assumi compromisso com ninguém”. Tenta-se provar que era uma situação circunstancial, era um momento da vida pontual e não uma relação na tentativa de cessar qualquer expectativa, desejo e manutenção de algo futuro.
Esse padrão demonstra que as relações interraciais não estão livres da hierarquia social que coloca a mulher negra na base o homem branco no topo.
De toda forma, quando estamos falando na primeira pessoa e encontramos vozes que conjugam experiências parecidas com as nossas, passamos por um processo terapêutico coletivo de compreender que inevitavelmente o arranjo social- racial penetra as relações subjetivas.
Mulheres negras por sofrem o impacto de raça, gênero e muitas vezes de classe observam o mundo de forma muito diferente do que homens brancos, pois acumulam essas três opressões sistêmicas. Ao longo da terapia fui aprendendo a me libertar dessa super estrutura para fazer a travessia do lugar de objeto para sujeito, vestindo as minhas experiências e nutrindo os meus desejos de maneira a não me preocupar o tempo todo com demandas sexistas, patriarcais, racistas e econômicas que me atravessam, pois isso pode ser muito sério dentro de uma relação.
Significa dizer que você não vai ter controle sobre como as pessoas te enxergam. No entanto, isso não pode te diminuir como sujeito afetivo e digno de amor, uma vez que a amor só se sustenta se for um espaço mútuo e nutritivo, livre de concorrência e controle, visto que a dependência, a instabilidade e o confronto são pressuposto de um amor ocidental, o que certamente queremos nos livrar.

Com efeito, muito mais que concluir que as relações interraciais estão fadadas ao fracasso, é elementar que haja espaço dentro dessa relação para falar sobre os processos constitutivos dessas representações subjetivas (branca e negra) que estão em polos extremos, ou seja, é preciso que se haja um ponto de contato fora da imagem preconstítuida Dicrapiana/Hibertiana e mulher Globeleza, de maneira que a manifestação do afeto esteja comprometida com a desarticulação do controle, o que demanda muito dialogo e compreensão do mundo do outro para que nas esferas do comportamento, dos gestos, das ações e das trocas não se perpetue hierarquias.






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