top of page

Mães pretas e os seus buracos emocionais

  • Foto do escritor: Monique Prado
    Monique Prado
  • 17 de ago. de 2021
  • 6 min de leitura

Enxoval. Chá de bebê. Quarto novo. Tudo cheirando novidade para esse serzinho que virá abrilhantar o lar. De toda sorte, um cenário encantado demais para mães pretas.



ree


Dona Silvia, a senhora minha mãe. Se a vi chorando umas 2 vezes nesses trinta anos foi muito. Hoje com 80 anos, mas à época com os seus 50 e poucos resolveu nos adotar, três crianças pequenas, pretas, recém adotadas, com a cobrança de quem não podia dar margem às críticas. Não tinha espaço para falhar.


Um salário mínimo. Muitas fraldas. Creche. Descrença de seus pares. Éramos nós quatro contra às estatísticas terríveis que assombram as famílias pretas, afinal, irmãos consanguíneos, saímos os três de uma família preta cheia de traumas: pai violento e mãe alcoólatra, para adentrar outra família preta: mãe solo e sem rede de apoio.


No Cadastro Nacional de Adoção do Conselho Nacional de Justiça, das 8.476 crianças cadastradas para adoção, 65,93% são pretas e pardas, o que dá um total de 5.588 crianças no Brasil que sofrem com as violências perpetradas pelo desajuste familiar e pelas mazelas do racismo institucional, pois ainda que crianças, pretos e pardas não são a preferência da filiação no imaginário do adotante, os quais ainda procuram por bebês de até 3 anos de pele branca.


Já mães solos compõem a realidade de 11 milhões da população brasileira cujo recorte de raça enfatiza o racismo estrutural, uma vez que 55,5% das chefes de família são mulheres pretas.


" Essa questão de ser mãe solo aqui na minha família é uma coisa muito comum, faz parte da minha realidade. Minha avó, por exemplo, criou 13 crianças sozinhas porque meu avô foi embora com outra mulher. Largou a mulher preta com os filhos para casar com uma mulher branca. Minha mãe casou, mas sempre mandou no lar, sempre teve aquela postura da ‘mulher preta forte’. Trabalhou muito, sempre sustentou a casa, foi o alicerce da casa. Então sempre tive influências de mulheres pretas, donas do lar, donas da casa, donas da das finanças. Eu tenho esse espelho assim de família”, analisa Thauany Lima, 28 anos.


Fica a pergunta: Quem segura o rojão da dor dessas mulheres quando começam a vir os problemas econômicos, psíquicos e emocionais decorrentes da educação dos filhos, muitas vezes, sem apoio familiar, institucional ou estatal?


Esse tensionamento da saúde mental gera uma série de efeitos colaterais a essas mulheres que estão longe de serem somente dados estatísticos.


.Quem é a rede da mãe preta?


A entrevistada Lizandra Caldas, 29 anos, mãe do Arthur, desabafa: "Não tenho 'rede de apoio'. Ninguém quer ficar com a criança para que eu possa sair, e me divertir. Ouvi uma vez da minha mãe que se eu quisesse sair e me divertir deveria ter pensado nisso antes."


Essa é uma frase facilmente reproduzida por pessoas que convivem ou estão próximas dessas mulheres que culpabilizam a mulher pela maternidade. A entrevistada provoca: "Então quer dizer que quando temos filhos não podemos nos divertir? Temos que viver em função da maternidade?"


A ausência de rede é uma característica típica do formato ocidental de criação dos filhos: é responsabilidade única e exclusiva da mulher dar conta da criação das crianças e serem "domesticadas" nos afazeres de casa enquanto que os homens ascendem em suas carreiras.


O isolamento pelo qual mães solos vivem é massacrante para essas mulheres, pois são privadas de ampliar o seu convívio social para além da família.


Há uma dimensão do racismo econômico que opera contra a emancipação dessas mulheres, visto que são marginalizadas, limitadas ao acesso do mercado formal, restringidas a circularem em espaços de poder e cerceadas de participam das decisões institucionais, o que implica na diminuição de políticas públicas pensadas para essas mulheres em termos de educação, saúde e serviços.


A opressão de gênero, raça e classe se somatizam para excluir a mãe preta como sujeito, ser social ou ser pensante, pois mina a sua subjetividade até que ela não tenha mais energia.


A pesquisadora Aza Njeri cravou o fenômeno "afrosurto" como uma categoria de surto psíquico experimentado por pessoas pretas dentro da diáspora afro-brasileira. Trata-se do exato momento em que o racismo fica cristalino, ou seja, essa mulher dá conta de que não se adequa ao estereótipo do senhor do ocidente, aquele sujeito universal: homem, branco, bem sucedido que goza da humanidade plena.


A depressão pós parto também forja famílias pretas, pois se defrontar com os desafios de maternar, muitas vezes sem rede, é um assustador para essas mulheres. E o que revela Thais Araújo, 28 anos, que nos conta: "Eu tive uma depressão pós parto a ponto de não aceitar o meu filho e isso foi muito difícil para mim. Mas depois me dei conta 'era eu ou eu'".


Essa ausência paterna é relatada também por Thauany, "O pai não está presente na hora de comprar um remédio, de ir numa reunião de pais. Então eu considero abandono, porque ele aparece só na hora boa, quando ela está saudável, aí ele traz chocolate e leva no McDonald 's. Agora criar, conhecer e ver a criança aprender cadê? Essa semana, por exemplo, ela aprendeu o alfabeto e ele não participa dessas pequenas coisas."



A construção da subjetividade dessas mulheres, dentro de um sistema patriarcal e racista como no Brasil, aloca essas mulheres para as beiras: baixa autoestima, solidão, exaustão e culpa por não dar conta de tudo.


Esse fenômeno é reconhecido na literatura moderna como reprodução social, ou seja, a desvalorização do trabalho relacionado ao cuidado no que tange a criação, a educação e as demandas familiares sobre as quais a mulher larga em desvantagem econômica, visto que os trabalhos relacionados ao cuidado ou são mal remunerados ou nem são, mantendo-as na condição de subordinação e os homens em posição de maior remuneração.


Em 2016, por exemplo, as mulheres dedicavam, em média, 18 horas semanais a cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, 73% a mais do que os homens (10,5 horas).


Além disso, dados de 2018 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstram que 92% das atividades domésticas são desempenhadas por 5,7 milhões de mulheres, das quais 3,9 milhões negras.


Para aquelas mulheres que conseguem furar a bolha e acessar o mercado formal, também não existe romance. No tocante à graduação, segundo dados da pesquisa "Estatísticas de gênero" realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 10,4% das mulheres negras completaram ensino superior em face de 23,5% das mulheres brancas. No trabalho, mesmo laborando mais horas, a mulher segue ganhando menos. Apesar da diferença entre os rendimentos de homens e mulheres ter diminuído nos últimos anos, em 2016 elas ainda recebiam o equivalente a 76,5% dos rendimentos dos homens.


Entre a limpeza da casa, o almoço e os cuidados maternos, essa mulher ainda encara o mercado corporativo com recorrentes interrupções e manexplaning por seus supervisores, gerentes e diretores, na sua maioria homens brancos que ditam a regra de como essas mulheres precisam agir. Um cenário típico de assédio moral, quando não sexual.


Na pandemia as coisas se agravaram. Essa mãe trabalhadora em home office ouve "O que você está fazendo agora", Lizandra relata indignada sobre as cobranças da pontualidade capitalista que esmaga a rotina dessa mãe, a qual se vê desafiada entre as reuniões virtuais e as atividades escolares do filho.


Nesse cenário, é corriqueiro que esteja sozinha ou que o seu companheiro ainda opere no mood patriarcal de não lidar com os afazeres domésticos.


“Hoje arco 100% com a minha filha, na questão financeira e acredito que emocional também porque eu estou a maior parte do tempo com ela. O pai fica, sei lá, duas vezes por mês com ela, durante o final de semana ou algumas vezes na semana, mas a verdade é que a maioria do tempo ela está comigo. Só que eu tenho que me preocupar, por exemplo, em organizar se ela vai ter roupa limpa, se não se ela vai voltar com roupa suja, se vai levar agasalho né? Se levou a escova de dente… Até isso a gente tem que se preocupar em levar escova de dente porque ela não tinha escova de dente lá. Hoje depois de muitas discussões ela tem escova de dente lá. “

pontua Thauany.



Quem autoriza essa mãe, muitas vezes em condições de vulnerabilidade social, a chorar? Quem dá o ombro para a mãe preta?


A objeção dessas mulheres, postas só no lugar de cuidadoras, é de que são interditadas de sua mulheridade, (leia-se, feminilidade) frente a maternidade. "Eu gostaria de voltar a me olhar como mulher, não apenas como mãe", diz Lizandra.


Precisamos nos corresponsabilizar pelas violências psicoemocionais que mães pretas vivenciam, pois as reivindicações recorrentes dessas mulheres denunciam que estamos sendo negligentes no cuidado e apoio de pessoas que estão localizadas na base da pirâmide social, muitas vezes jogadas à própria sorte.


Se de um lado a responsabilidade estatal em termos aumento de creches, auxílios e políticas de equalização salarial entre os gêneros são estruturais, de outro lado, o nosso papel enquanto familiar ou amigos dessas mulheres é de compor a sua rede de apoio para aliviar a carga que essas mulheres enfrentam, pois condená-las a condição de serviçais é criminoso.


Comentários


©2025 por Monique Rodrigues do Prado

bottom of page