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A roda de samba como um espaço de fortalecimento de afetos

  • Foto do escritor: Monique Prado
    Monique Prado
  • 1 de dez. de 2023
  • 9 min de leitura

Atualizado: 25 de jul.



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(foto: instagram do samba de Dandara)


Nesse texto explano as ideias centrais da o meu projeto de mestrado intitulado Samba de Dandara: a roda de samba como espaço de fortalecimento de redes de afetos nas narrativas de mulheres negras na Faculdade de Filosofia, letras e ciências humanas do Programa de pós-graduação em humanidades, direitos e outras legitimidades (PPGHDL) da Universidade de São Paulo.


Ao longo dos anos, pude adquirir certa consciência socio-racial advinda do contato com os movimentos negro e feminista interseccional, isto é, composto por mulheres negras. Com isso, fui compreendendo o valor de me ver naqueles corpos, os quais eram parecidos com o meu, já que outrora não foi tão fácil identificá-los por perto nos campos acadêmico e jurídico. Esse acordar para a minha negritude me fez entrar em contato inicialmente com Virgínia Bicudo, Neusa Santos e Beatriz Nascimento na esteira do que é ser mulher, negra, bem como pesquisadora.


Isso me intrigou, primeiro porque essas mulheres eram da geração da minha querida mãe, mulher negra, cujo sonho era ser comissária de bordo ou pianista, mas ao manifestar esses desejos na década de 60, foi imediatamente cerceada pelos homens da família: “onde já se viu aeromoça preta?!”, “não precisa estudar para ficar na boca do fogão!”. Essas palavras que hoje soam alarmantes, faziam parte de um contexto cuja opressão sexista estava dada inclusive no Código Civil brasileiro de 1916 a exemplo dos artigos 6º, 233, 242, 251, entre outros, onde a mulher não exercia a sua plena capacidade civil. Além, claro, da opressão advinda do racismo, visto que o imaginário social não toleraria uma mulher preta na condição de aeromoça ou pianista.


O contato com militantes e depois com aquelas intelectuais me fizeram despertar a curiosidade sobre as mulheridades negras. Em Neusa Santos Souza (SANTOS, [1983] 2021) ressalto o ponto de que certo grau de ascensão da população negra revela o quanto tentamos nos distanciar da nossa própria negritude. Já em Virgínia Bicudo pude observar que, embora ela tenha sido uma estudiosa multidisciplinar e primeira não médica a estudar psicanálise no Brasil, a qual dedicou sua pesquisa sobre relações raciais e as atitudes de pretos na cidade de São Paulo no século passado, até hoje não tem o reconhecimento da magnitude de sua importância pela história oficial (GOMES, 2013). Em Beatriz Nascimento identifiquei uma intelectual corajosa que demonstrou como as barreiras sociais impactou na continuidade de sua produção acadêmica, tendo sua vida interrompida abruptamente pelo que hoje denominamos feminicídio.


Essas mulheres estavam conversando comigo, tirando a pretensa venda da “justiça cega e neutra” e trazendo a consciência o perigo do meu embranquecimento ao que Frantz Fanon nomea de “propriedades de revestimento”, ou seja, a vontade resoluta de adquirir a parcela de ser ou ter do branco no próprio ego (FANON, [1952] 2020, p. 66).


Não tardou até que eu me desse conta da minha tentativa em performar inconscientemente uma classe social e racialidade da qual eu não pertencia. De toda forma, o contato com a minha negritude não deixou de ser menos perturbador, visto que como advogada, os símbolos da elite econômica branca pairam sobre a minha cabeça enquanto mulher negra periférica que transita no território simbólico da branquitude.


Com efeito, o afeto adentra então a minha vida como possível ferramenta de luta e resistência, encontrando na leitura, principalmente, de outras mulheres negras o acolhimento do qual Vilma Piedade nomeou como dororidade. Essa foi uma forma de respiro para a raiva que se proliferava dentro de mim ao perceber que eu nunca alçaria todos aqueles símbolos branco-ocidentais que o direito havia me prometido relacionados a noções neoliberais de sucesso.


De toda sorte, comecei a perceber que o meu corpo é um território potente que carrega a esteira do passado, do presente e do futuro como diz Jurema Werneck ao elucidar que “os nossos passos vêm de longe” (WERNECK, 2009). Assim, onde quer que eu vá, estarão comigo tanto a fúria da aeromoça-pianista recalcada, quanto a dedicação da mãe que me permitiu estudar mesmo em um Estado organizado pelo racismo, sexismo e classismo.


Com efeito, depois de 8 anos fora da academia, a minha retomada partiu do desejo de traduzir a minha dor, mas não só, existia uma fome de nomear aquilo que encontra eco em outras vivências, sobretudo, de mulheridades negras que foram amordaçadas e empurradas para o silêncio. Grada Kilomba ([2008] 2019) evoca a sua fala enquanto pesquisadora, compreendendo o silenciamento como uma estratégia impiedosa do sistema colonial imposta para trancar os corpos das nossas ancestrais para que não contassem as suas histórias em primeira pessoa. Dito isso, estamos diante dessa fome coletiva para não só falar, como também recuperar as nossas histórias escondidas nos porões do colonialismo.


É bom lembrar que, por tratar-se do processo de elaboração da vida humana, a fala e a escrita durante muitos séculos não existiram separadamente, justamente porque a escrita nasce a partir da oralidade. Nesse sentido, reconhecer que a memória não é apenas um repositório de fatos, mas um processo ativo cheio de símbolos e significados, faz das duas fontes fundamentais para a preservação do passado aliando narração e história em determinado contexto histórico (PORTELLI, 1997).


De alguma forma, ao tomar contato com autoras como Neusa Santos, Lelia Gonzalez e Grada Kilomba tive o impulso de cavar fundo para entender a minha subjetividade negra de modo a reinventá-la pela escrevivência e pelo imaginário encontrando eco nas redes de afeto que foram sendo pactuadas com mulheres negras da minha família, do meu ciclo social, mas também com as minhas entrevistadas: mulheres negras sambistas, que por meio de suas memórias narradas me ajudaram a compreender esse campo simbólico de construção subjetiva enquanto um corpo político, os quais muitas vezes são pisoteados pelo racismo, pelo sexismo e pelo classismo concomitantemente.


Grada Kilomba ([2008] 2019), ao se debruçar sobre essa suposta neutralidade a que se pretende a academia, branca, masculina e de pensamento hegemônico, nos ensina que para desqualificar a produção de corpos dissidentes, as instituições irão acusá-los de pessoal, emocional e parcial demais, no sentido de perpetuar o seu lugar de controle da experiência e realidade de pessoas negras. Dessa forma, ao expressar-se, a sujeita negra desafia a epistemologia tradicional e desorienta a normatividade branca, revelando a sua posição social e visão de mundo dentro desse espaço de disputa.


Esse deslocamento provoca uma movimentação das posições sociais de quem detém o conhecimento e de quem pode falar, de maneira a desafiar a autoridade epistêmica naturalizada pela branquitude como sua. Com efeito, quando utilizo as ferramentas da história oral para costurar a minha pesquisa ouvindo sambistas mulheres negras para compreender como se formam redes de afetos, tendo a desarticular esse lugar neutro, visto que a escuta enriquece o meu olhar para a produção acadêmica, de modo que pesquisadora e entrevistadas elaboram juntas o pensamento, rechaçando uma suposta universalidade que está muito distante da realidade de mulheres negras, sobretudo porque não se pauta na objetivação de suas trajetórias, mas no convite de que partilhem as suas histórias comigo enquanto negociantes desta produção histórica.


Como nos ensina a Ialorixá Carmen de Oxum e Silvia Rivera Cusicanqui (2021), isto é um exercício de ampliação da imaginação epistemológica, o que demonstra um campo farto que sobrepõe a clássica dicotomia entre pesquisadora, enquanto sujeita que é única portadora do conhecimento válido, e entrevistada como sujeita objetificada, passiva e detentora de um conhecimento subalterno.


Pesquisar o samba como um lugar de expressão de afetos construído através da oralidade narrada típica da nossa negritude é o cerne desta dissertação, pois quando bell hooks ([2000] 2020) nos convoca a formar comunidades amorosas, precisamos traduzi-las não só como espaços de intenções harmoniosas mas como redes de afetos que absorvam as pulsões e emoções, assim como as suas negociações entre as sujeitas que se propõe a compor essas redes.


Desse modo, entrevistei quatro das sete integrantes do Samba de Dandara cujo objetivo é ouvir sobre as suas percepções sobre o tema em análise, de forma que as perguntas selecionadas tem como intuito servir de fonte direta a essas inquietações, a partir do olhar de mulheres negras sambistas que foram entrevistadas sob orientação metodológica e política da história oral, visto que essa tem como fulcro documentar a experiência através de uma escuta sensível.


Com efeito, sendo o samba uma expressão de origem negra tenho como interesse investigar se há um deslocamento imagético que nos permita criar utopias prático-filosóficas conectadas com perspectivas de futuro onde pessoas negras tenham relações entre si e possam ensinar outras dinâmicas a partir da pedagogia da circularidade (FERREIRA, 2019) como formas de usufruir das suas vidas enquanto sujeitos políticos, sem que precise negociar o tempo todo com o Estado.


Assim, com a finalidade de não essencializar o trabalho ainda que admitindo que a roda de samba constitui uma rede complexa de múltiplos afetos, essa pesquisa busca investigar os significados da roda de samba para mulheres negras sambistas e quais são os afetos mobilizados entre elas, em roda e com o público a partir das suas elaborações orais, da sua performance e memórias que dialogam com a memória coletiva, mobilizando conceitos como subjetividade(s), negritude, interseccionalidade, território e trânsito, espiritualidade, roda de samba, sentir na roda e afetividades a partir das vozes das integrantes do Samba de Dandara.


Nesse caminhar, as trajetórias das Dandaras nos ajudam a pensar como dentro de um cenário pós-colonial de escassez para esses corpos foram desenhadas estratégias de luta, sendo, portanto narrada por essas mulheridades no intuito compreender as suas táticas de resistência e como eventualmente elas contribuem para derrubar o imaginário de subalternidade que permeia o imaginário coletivo. Além disso, a pesquisa visa observar se de alguma maneira a roda também espelha as opressões cotidianas experimentadas por pessoas negras fora da roda com o fulcro de analisar as supostas contradições que podem aparecer nesse espaço de negociação.


Com isso, a escrita tecida a partir da escuta e da experiência, me fez olhar para a escrevivência de Conceição Evaristo (1996) ao longo dessa dissertação, já que a narrativa de mulheres negras têm circulado de outras maneiras com produção epistemológicas em que a primeira pessoa faz ecoar a sua voz para a criação de laços capazes de desafiar opressões estruturais, razão pela qual a oralidade e a escrita dada pela experiência, são aliadas de pesquisadoras e entrevistadas.


Pensar a roda de samba como um espaço de produção de afetividades a partir das trajetórias de mulheres negras sambistas, é mobilizar as estratégias de construção subjetiva de sujeitas que foram objetificadas, silenciadas, oprimidas e excluídas nos mais diversos estratos que compõem a sociedade brasileira. Da mesma maneira, ressignificar o samba como um espaço que respeita às pluriversidades de produção de conhecimento pedagógico é estrutural para chacoalhar a hegemonia que privilegia apenas uma forma de pensar, como se corpo e mente estivessem apartados.



Com efeito, essa pesquisa enfrenta um debate contemporâneo que tem como fulcro o mapeamento de espaços que mantiveram vivas as tecnologias ancestrais do povo negro, tanto do ponto de vista de mobilização social e as ações encabeçadas no cenário público, assim como comprender os processos de deslocamento empreitados para reelaboração de uma negritude que não seja pautada no olhar do outro. Portanto, esse trabalho é feito em colaboração com mulheres negras sambistas que desafiam a história oficial e recorrem a pedagogia da circularidade (FERREIRA, 2019) para conceber o que bell hooks ([2000] 2020) chamou de comunidades amorosas. Justifica-se aqui o interesse em investigar não só a vida cotidiana narrada, como a constituição de laços que cria uma antítese a matriz colonial que enxerga mulheres pretas como um bloco monolítico à luz de estereótipos que esvaziam as potencialidades dessas sujeitas.


A hipótese então levantada sustenta que as afetividades estão para além do ponto de vista do amor romântico ocidental em que os afetos mobilizam as nossas pulsões para nos dar energia para lutar contra opressões estruturais (hooks, [2000] 2020), considerando a oralidade como valor afrocentrado de produção de conhecimento (MARTINS, 2003) e a circularidade pedagógica da roda (FERREIRA, 2019), enquanto a ritualidade se expande no momento em que se tocam os tambores e se solta a voz.


Lélia Gonzalez ao analisar a mãe preta, a mulata e a doméstica observa como mulheres negras foram encontrando maneiras de permear a sociedade brasileira que ora as lê como o lixo dessa sociedade, ora como as rainhas do carnaval. A autora ilustra que o pretuguês, reconhecido como a linguagem passada pela oralidade com influência bantu através de mulheres negras ao criarem os seus filhos e das suas patroas brancas, foi responsável por dar uma rasteira nessa sociedade que se pensa europeizante e ignora as suas matrizes amefricanas. A figura da mãe preta, subalternizada pelo brancocentrismo, é aqui ressignificada pela autora. Assim, o pretuguês "diz respeito à internalização de valores, ao ensino da língua materna e a uma série de outras coisas mais que vão fazer parte do imaginário da gente” (GONZALEZ, 1984, p.235).


As trajetórias de mulheres negras é, portanto, um material basilar que contrapõe a história masculina, branca e classista, tendo como cerne a absorção de subjetividades que se filiem à contra colonialidade, ecoando as multiplicidades de trajetórias e o agenciamento das lutas (ROVAI, MONTEIRO, 2021). Nesse sentido, convidar mulheres sambistas para entrar na roda epistemológica e ouvi-las para produzir textualidade à luz de suas narrativas e vivências, seria também uma forma de dar uma rasteira nessa sociedade brasileira que, como Gonzalez (1984) diria, escolheu viver uma neurose branca e mitológica, ao invés de reconhecer os valores de suas matrizes afro-ameríndias.



Assim, enquanto objetivo geral me proponho a investigar os significados da roda de samba para mulheres negras sambistas e quais são os afetos mobilizados entre elas, em roda e com o público, a partir das suas partilhas orais, da sua performance e memórias à luz da subjetividade, da escrevivência e da oralidade dessas mulheres que compartilharam comigo suas trajetórias, as quais servirão como base dessa pesquisa.








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©2025 por Monique Rodrigues do Prado

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